Como Mulheres Indianas Reciclam as Roupas Descartadas pelo Ocidente

Cem mil toneladas de roupas doadas por países desenvolvidos são vendidas para Índia todos os anos para serem recicladas. A indústria de reciclagem de Panipat, no norte da Índia, faz parte de um mundo escondido, sobre o qual poucos ocidentais sabem a respeito.

O documentário Unravel (que significa algo como ‘desenrolar’, em português), conta a história de mulheres que trabalham reciclando roupas, enquanto mostra a complexidade do ciclo da moda.

Para essas mulheres, o contato mais próximo com pessoas ocidentais será através das montanhas de roupas que chegam até lá todos os dias.

A cultura do desperdício é um conceito difícil de ser assimilado pelos indianos, que produzem apenas meio quilo* de lixo por pessoa por ano, quase nada em comparação com os 383 kg que cada brasileiro produz por ano.

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Meghna Gupta, a diretora de Unravel entrou em contato pela primeira vez com a indústria indiana de reciclagem de roupas a convite da antropóloga Lucy Norris, que estuda processos de reciclagem de roupas por países em desenvolvimento e precisava de alguém que falasse indi como assistente em uma pesquisa. Assim as duas começaram uma parceria que deu origem a Unravel .

Meghna nasceu na Índia mas vive em Londres. Essa mistura cultural faz com que ela circule com fluidez entre o ocidente e o oriente, e mostre com muita sensibilidade e respeito, a realidade de pessoas com vidas e culturas normalmente apagadas e marginalizadas.

Conversei Meghna Gupta sobre a sua experiência convivendo com as operárias de fábricas indianas de reciclagem. Leia abaixo parte da nossa conversa.

Noosfera: Quais são algumas concepções erradas que europeus têm sobre pessoas da Índia?

Meghna Gupta: As pessoas sempre têm interpretações erradas sobre tudo! Isso acontece, na maioria das vezes, quando as pessoas não têm a chance de conectar diretamente com as pessoas sobre as quais elas estão fazendo essas interpretações erradas, ou quando, mesmo que tenham a oportunidade, preferem não se relacionar com elas. Uma que sempre me aparece é que todos os indianos são vegetarianos, e que nossa comida tem um milhão de temperos dentro. Índia é um país muito diverso – com muitas culinárias, e todas com diferentes ingredientes, gostos e apimentada em muitos níveis. Outra é que somos todos muito espirituais e religiosos, outra vez, esse é um assunto muito pessoal e varia enormemente de indivíduo para indivíduo.

N: E que indianos têm sobre a europa?

MG: Tem também a ideia reversa – que toda a comida européia é sem gosto e suave. Tem um programa de comédia britânico chamado Goodness Gracious Me que tem um sketch, com pessoas indianas tentando pedir “a coisa mais suave do menu” para terem terem uma autêntica experiência de culinária inglesa. Outra é que europeus não têm uma higiene pessoal muito boa e talvez não tomem banho todos os dias. Eu tenho a impressão que isso pode ter começado com uns hippies fedidos que não lavavam seus cabelos que a geração da minha avó pode ter encontrado na Índia dos anos 60.

N: Em um momento de Unravel, a protagonista cata um maiô com descrença e ri imaginando como pessoas podem usar aquele pedaço de tecido. Primeiro fiquei espantada pensando o quão pouco essa mulher sabe sobre o resto do mundo. Até perceber que eu também, com internet e tudo, não sei absolutamente nada sobre a moda-praia indiana. O que mulheres usam para nadar, na Índia?

MG:  A Índia é um país muito diverso, com enormes diferenças de gosto, classe, experiências socio-econômicas, educação, atitudes liberais ou pressões conservadoras / religiosas, e tudo isso influencia o que as mulheres preferem vestir para nadar. Uma mulher pode nadar em uma lagoa completamente vestida com um sari, ou no mar vestindo uma salwar kameez. Ela pode usar um biquini para nadar nas praias de Goa, ou um maiô em uma piscina urbana. Ela pode nadar de shorts e camiseta. Talvez ela nem nade. O tanto que uma mulher indiana se cobre depende de tantos fatores que é impossível generalizar!

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N: Por que você acha importante que pessoas ocidentais saibam sobre a indústria indiana de reciclagem de roupas? 

MG: É definitivamente importante, porque os ocidentais são maioria entre os consumidores de roupas. Existe uma desconexão na nossa cultura de varejo entre pensar em como o que compramos foi feito e como nossas roupas continuam a ter um impacto depois que já não precisamos mais delas. Nossa relação com as roupas é fortemente influenciada pelo marketing do comércio.

É difícil tomar decisões baseadas em necessidades racionais, quando o marketing do varejo é tão poderoso. A indústria do têxtil não é transparente, e deveríamos fazer mais, coletivamente, para torná-la transparente. Se consumidores soubessem mais a respeito de todo o ciclo das roupas, eles seriam mais capazes de avaliar suas próprias relações com esse ciclo.

N: Lucy Norris relatou que mulheres que trabalham na indústria de reciclagem de roupas de Panipat recebem em média 4 reais por dia de trabalho, menos da metade do que um homem recebe.
 
M: Além do impacto social das roupas – os salários que as pessoas recebem, e as condições nas quais elas trabalham – existe também um impacto ambiental imenso desse consumo excessivo de roupas. Igualmente, eu acredito que seja importante que pessoas não-ocidentais dentro desse ciclo – trabalhadores e também consumidores – entendam suas posições e sejam capazes de pensar a respeito de valor; para exigir condições mais justas.

N: O que mudou na maneira com que você lida com suas roupas ?

MG: Eu penso muito mais sobre roupas do que eu costumava pensar – e continuo a aprender mais através da Lucy Norris, a antropóloga com quem eu trabalhei em Unravel. Nós esperamos fazer um projeto sobre a teoria da ‘economia circular‘ aplicada à indústria do vestuário, ( uma alternativa à linear ‘fazer, usar, descartar’), que tenta manter os recursos em uso pelo maior tempo possível e regenerá-los no fim das suas vidas. Pessoalmente, eu acho que o maior impacto foi que hoje em dia eu compro muito menos roupas e me pergunto o quanto eu realmente preciso.

Particularmente, eu amo roupas e acessórios que são passados a diante ou dados para mim – e gosto de pensar neles como objetos com uma memória ou uma conexão pessoal – vai além de serem apenas peças de roupa. Eu ainda acho bem difícil escolher o que comprar. É impossível fazer a compra perfeita, já que a indústria do vestuário é tão complicada – a agricultura, a água, o trabalho, o transporte, os impactos do lixo – é muito difícil saber tudo sobre tudo isso. Quanto mais descubro, mais dúvidas me aparecem. Portanto, para finalizar, eu diria que você não pode ir muito errado se você comprar menos e der mais valor ao que já tem.

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Os tecidos reciclados em Panipat dão origem àqueles cobertores cinza usados aqui no Brasil principalmente por moradores de rua. Depois de reciclados, os cobertores são mandados novamente para o ocidente e vendidos para instituições como hospitais, assistência para refugiados e prisões, para serem distribuídos para pessoas em posições periféricas da sociedade.

Nós aqui no ocidente temos uma certeza de que “fizemos a coisa certa” toda a vez que doamos roupas para caridade. A consciência fica limpa, as roupas desaparecem. Mas para Lucy Norris, todo esse ciclo tem implicâncias muito mais perversas:

“Primeiro algo que invariavelmente iria para o lixo é mascarado de ‘presente’ na forma de uma doação, e depois vem a tentativa de transformar um bem de consumo feito a partir dos nossos refugos, de novo em um presente caridoso, as custas do trabalho de outras pessoas. (…) Em certo momento os regimes de valor nos quais os cobertores circulam parecem se contradizer, e a moralidade em si, vira um produto de consumo.

Cores lamacentas, textura espinhenta, e cheiros duvidosos fazem ser difícil gostar desses cobertores. E parece que tudo isso é proposital. Existem outros cobertores que são feitos com os mesmos materias, e que são muito mais lindos:

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Outros cobertores também são reciclados a partir dos mesmos materiais, e vendidos nas ruas da índia. (Foto retirada do site de Lucy Norris).

Um dos responsáveis por uma instituição de caridade que compra cobertores reciclados da indústria indiana (que preferiu não se identificar), revelou que “tentando impedir que pessoas vendam os cobertores distribuídos, já que nós também não queremos fomentar um mercado secundário e distorcer a economia local” o cobertor deve providenciar calor e “servir para o uso humano” mas sem que dure muito tempo, e sem que se torne um objeto de desejo.

Assim, esses cobertores reciclados servem como marcadores de pobreza, sinalizadores do nosso próprio ‘regime de castas’.

Para desfocar um pouco a linha que separa pessoas em situação de rua das outras pessoas, a artista visual Luiza Só desenvolve quimonos com cobertores reciclados, e pretende ensinar moradores de rua a fazerem seus próprios quimonos. Assim ela quer subverter um pouco todo o motivo de ser dos cobertores: quanto mais pessoas diferentes usarem esses quimonos, menos eles vão servir como delimitadores sociais.

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Kimona 27 faz quimonos com cobertores reciclados.

O ciclo de tudo que descartamos não acaba quando jogamos as coisas no lixo. Não acaba nunca, na verdade, e quanto mais sabemos a respeito, mais podemos tomar decisões conscientes e entender os mecanismos nos quais estamos todos inseridos.

 

Assista agora o documentário Unravel legendado em português:

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* Esse número (meio quilo) equivale ao lixo doméstico produzido por pessoa por ano na Índia, se levarmos em conta o lixo eletrônico e outras formas de descarte, o número pode chegar a 100kl por ano por pessoa.

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