Em um experimento feito na Universidade de Amsterdã, a professora de psicologia drª. Merel Kindt encontrou uma maneira eficaz de “apagar” medos sem danificar a estrutura do cérebro.
Para entender a pesquisa primeiro precisamos entender como as memórias funcionam: Muitos neurônios estão envolvidos na formação de uma determinada memória, e o mais interessante é que uma lembrança não é como um filme para sempre gravado no cérebro, imutável. Pelo contrário: toda vez que nos lembramos de um evento, ele se torna instável e pode ser modificado.
O que normalmente acontece é que nós apenas reforçamos as ligações envolvidas nesse momento em que a memória está oscilante, deixando a lembrança e os sentimentos associados a ela mais fortes. Ou seja, a cada vez em que nos lembramos de algo, o caminho neuronal conectado àquele evento fica mais forte. E é um ciclo vicioso: quanto mais nos lembramos de alguma coisa, fica cada vez mais fácil se lembrar dela novamente.
O que a drª. Merel e o seu time fizeram foi bloquear quimicamente a reconsolidação de uma memória instável.
O experimento funcionou assim: foram selecionadas 45 pessoas com forte medo de aranhas. Em um primeiro momento, cada participante encontrou uma enorme tarântula dentro de um terrário aberto e foi instruído a tocá-la. Nenhum deles conseguiu, de fato, tocar a aranha. Mas tudo bem, porque esse momento serviu somente para reativar a memória de medo.
Ao enfrentar a aranha, o participante era levado a acessar os seus medos e as suas memórias traumáticas. Nessa hora, a memória associada ao medo de aranha se tornava instável. Logo depois disso, o participante recebeu uma dose de propranolol, um betabloqueador que é usado para o tratamento de condições cardíacas e hipertensão.
Essa droga perturba a reconsolidação da memória, porque, no momento em que a lembrança está instável, o propranolol bloqueia um receptor chamado β-adrenergic, que é associado a metabolização de sensações de medo e de ansiedade. E assim a memória é reconsolidada — mas, dessa vez, sem associação com o medo. Os participantes do experimento não esqueceram o que são aranhas, mas deixaram, quase que imediatamente, de sentir medo quando olham ou pensam nelas.
Além do grupo que recebeu a droga, outros dois grupos participaram da pesquisa: um grupo recebeu propranolol mas não enfrentou a aranha, e por isso não acessou a memória de medo, e o outro grupo recebeu uma dose de placebo.
Uma semana depois, todos os participantes encontraram a tarântula novamente. Quando incentivados a tocar a aranha, todos os participantes do 1º grupo conseguiram fazê-lo, enquanto os participantes dos outros grupos mal conseguiram se aproximar do terrário.
E agora eles estavam associando um novo sentimento às aranhas: o triunfo. Um ano depois do experimento, os pacientes continuam sem apresentar medo de aranhas.
A drª. Merel está muito satisfeita com o resultado. “Nós mostramos que uma droga amnésica, quando ingerida em conjunto com a reativação de uma memória, transforma um comportamento de repulsa em um comportamento de encontro em pessoas com medo real de aranha”, comenta. “Esse novo tratamento mais parece cirurgia do que terapia”.
Realmente é um “tratamento mágico”, que apaga o medo completamente e para sempre depois de apenas 1 dose de um pequeno comprimido.
Agora, acredita-se que essa técnica possa ser muito útil para casos de ansiedade e de estresse pós-traumático, mas tratamentos desse tipo seriam bem mais complexos, já que as conexões relacionadas a medos mais abstratos — como o medo da morte — provavelmente seriam mais difíceis de serem encontradas e acessadas.
Todo esse experimento de aniquilação de medo foi documentado nesse programa de TV (em inglês), que é muito interessante e mostra outras formas de hackear a memória — como a implantação de memórias falsas, por exemplo.
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A foto de destaque foi retirada do filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, que mostra uma técnica muito semelhante à da drª. Merel Kindt para apagar memórias completamente. Experimentos desse tipo já haviam sido feitos em ratos na época em que o filme foi lançado.
O artigo da drª. Merel, relatando todo o processo, pode ser lido na íntegra aqui.
Texto revisado por Luís Cunha.