Como a Internet Esquisita e Sem Filtros se Tornou uma Mina de Ouro para a Mídia

Cecilia Bleasdale estava em dúvida a respeito da roupa que usaria para o casamento da sua filha Grace. Enquanto esperava em uma fila da Roman Originals, uma loja há 30 minutos de Liverpool, no começo de fevereiro de 2015, a mulher de 57 anos tirou foto de 3 possíveis vestidos e as enviou para Grace. Cecilia escolheu o modelo azul e preto por 74 dólares e no caminho para casa avisou Grace que havia comprado o vestido na foto.

“Ah, o branco e dourado?”, Grace respondeu.
“Não, é preto e azul.”
“Mãe,” ela respondeu, “se você acha que aquilo é preto e azul, está precisando consultar um médico.”

Sem conseguir concordar com o seu noivo a respeito da cor do vestido, Grace postou a ilusão de ótica no Facebook. Algumas pessoas curtiram, e 5 ou 6 amigos debateram nos comentários.

No casamento, mais tarde naquele mesmo mês, o vestido era uma história do passado. Mas algo daquele post no Facebook havia ficado na cabeça de Caitlin McNeill, uma amiga de Grace e guitarrista da banda folk Canach. Depois da cerimônia, a garota de 17 anos postou a imagem do vestido no Tumblr para os 2 mil seguidores do seu perfil Swiked. Ela adicionou a descrição “gente, por favor, me ajudem — esse vestido é dourado e branco ou azul e preto? Meus amigos e eu não conseguimos concordar e estamos surtando aqui com isso”.

O post decolou rapidamente, depois pulou para o Twitter, onde se transformou em uma hashtag. Em pouco tempo, o vestido se tornou “O Vestido”. Ao final do dia, aparentemente todas as pessoas do planeta estavam discutindo sobre ele.

Volte essa trajetória turbulenta até o início e perceba que existe um detalhe muitas vezes ignorado: um dos maiores fenômenos virais da última década começou como um post no Facebook com menos de 20 likes.


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Às vezes, quando estou me sentindo entorpecido pela cachoeira de novidades e tendências virais que aparecem nos meus feeds, eu uso um gerador de números aleatórios para fazer buscas no YouTube, por vídeos sem nome, aqueles que ninguém assistiu antes.

A sensação é de encontrar vídeos de câmeras de vigilância que aliens colocaram para observar a humanidade.

Eu clico indiscriminadamente de um vídeo para o próximo: um homem explica como ele trocou a sua bicicleta por uma câmera usada — clique; uma criança dança na frente da TV ao som de uma música eletrônica pesada — clique; uma garota, sozinha na sua cozinha, se entusiasma“e é assim que você faz BROWNIES — clique.

Existe algo de doce e sincero nesses vídeos. Eles ecoam uma época antiga da internet, quando ninguém sabia que diabos estava fazendo. Quando o sinistro, o desconcertante e o perigoso espreitavam há apenas alguns cliques de distância. Antes de uma combinação de serviços centralizadores criarem uma web previsível e higienizada. Na minha época, o pessoal tinha que dar muita volta pela web pra achar alguma coisa.

Aquela internet, antiga e esquisita, nunca desapareceu de verdade. Ela está apenas escondida das nossas plataformas de mídia social.

A maior parte do conteúdo da web é acessada por meio de algumas poucas plataformas. Essas empresas fazem dinheiro a partir da informação que os seus usuários postam, então, elas encorajam todo mundo a postar o máximo possível.

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No que você está pensando?

No entanto, isso causa um problema: tem muita coisa. Até mesmo o usuário mais ávido, com os olhos vidrados na rolagem infinita, passando por milhares de fotos de bebês, de artigos sensacionalistas e de anúncios não pode ver tudo o que é postado.

“Eu amo esse site, ele me conecta a todos os meus amigos.”

Isso coloca essas empresas em um dilema. Elas não podem dizer às pessoas para postarem com menos frequência ($$$), mas elas também não podem deixar os seus sites serem esmagados por todo esse ruído ensurdecedor porque os usuários vão ficar frustrados e abandonar o navio ($$$). Então, elas filtram o conteúdo, cada uma à sua maneira. O feed de notícias do Facebook, por exemplo, usa um algoritmo que impulsiona o conteúdo baseado em uma série de fatores misteriosos (as pessoas estão se envolvendo com o post? Estão dando os “parabéns”? Será que eles pagaram alguma coisa?). O Google oferece resultados de pesquisa sob medida para o que considera que seja relevante para o usuário. O Twitter está experimentando com alternativas à ordem cronológica. Tudo funciona muito bem. Os nossos feeds são relativamente suportáveis e, porque não dizer, tediosos.

Ainda assim, embaixo dessa camada anestesiada e controlada, todas aquelas coisas desregulamentadas ainda existem.

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“Por que ninguém curtiu meu post ainda??”

Essa é a chamada “Web Solitária”. Ela vive no espaço lamacento entre o mainstream e a deep web. O conteúdo é público e encontrável pelos motores de busca, mas difundido para uma audiência minúscula, deixado de fora pelos algoritmos e/ou difícil de encontrar usando as técnicas tradicionais de busca.

Qual é o tamanho da Web Solitária? Baseado em um estudo de 2009 que mostra que 53% dos vídeos do YouTube não passaram a marca das 500 visualizações, é seguro estimar que: ela é grande, muito grande.

Ela inclui, mas não se limita a: vídeos do YouTube que nunca foram vistos; contas do Twitter com centenas de tuítes e nenhum seguidor; bots de spam; vídeos com imagem borrada e som estourado; petições por causas perdidas; aplicativos que ninguém vai baixar; e posts anônimos no 4chan que desaparecem de repente, se extinguindo como estrelas distantes feitas da queima de lixo.

Existem até empresas na Web Solitária. Uma rede de fast food do Cazaquistão chamada Hardee’s, por exemplo, tem apenas 160 seguidores no Twitter. Por um tempo, a conta tuitava aleatoriamente uns códigos inexplicáveis, como uma emissora de números fast food.

 

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Parece um tipo de conteúdo mais honesto do que muito da web mainstream, estereotipada e pré-embalada. Parece ser o resultado de plataformas dizendo agressivamente para as pessoas que as suas vozes são importantes e merecem ser ouvidas, sem deixá-las perceber enquanto a sua potência de transmissão é diminuída. A Web Solitária está repleta de desesperadas mensagens em garrafas, sendo levadas cada vez mais longe por uma correnteza de conteúdo irrelevante.

Existem ferramentas para se explorar a Web Solitária, se alguém for especialmente preguiçoso: sites como 0views e Petit YouTube colecionam vídeos “desinteressantes” que nunca foram visualizados; Sad Tweets encontra tuítes que foram ignorados; Forgotify rastreia o Spotify em busca de músicas que nunca foram tocadas; Hapax Phaenomena procura por “imagens historicamente únicas” na busca de imagens do Google e /r/deepintoyoutube, que foi criado por um estudante de 15 anos chamado Distin (vídeo favorito: “Motivational Lizard”) faz curadoria de vídeos obscuros e bizarros.

Mas eu prefiro a busca manual. Encontrar algo interessante ao acaso, com a ideia conceitual certa, é fascinante. É como pescaria, só que sem o ar puro, ou a atividade física, ou as minhocas esmagadas. Por exemplo: às vezes, procuro uma frase triste no Twitter:

 

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“Usar uma impressora 3D para imprimir uma namorada.”

Ou eu procuro por uma música ruim “+ karaoke” no YouTube, e assisto aos vídeos com menos visualizações. Ou “paródias de músicas”:



Ou “teste para reality show”:


Uma das minhas técnicas favoritas vem do subreddit /r/imgxxxx e envolve procurar por nomes padrão de arquivos de câmeras digitais mais 4 números aleatórios.
Isso escava vídeos tão indesejados que eles nunca nem receberam um nome. Em alguns casos, parece que nem a pessoa que o gravou assistiu.

Será possível que essa quantidade enorme de conteúdo sem relação alguma entre si tenha uma estética unificada? Bom, quase, mais ou menos. O que os une é o que eles não são. A maioria dos sites tem “dicas de conduta” — que encorajam ou sugerem —, e boa parte do conteúdo da Web Solitária viola ou ignora essas regras, com qualidade ruim e esquisita, amadora, com os seus títulos impossíveis de procurar. Alguns deles são encantadores, sinceros, rudes. Muitos deles são lixo incompreensível. Eles variam em duração — seja muito curto ou muito longo — e evitam narrativas coesas.


Eu tenho a incômoda impressão de que alguns desses vídeos não foram feitos para serem vistos. E já que eles acabam sendo janelas sinceras e desconfortáveis para a vida das pessoas, assistir muitos deles pode ser ao mesmo tempo invasivo e emocionalmente exaustivo.

Mas precisamente por todos esses motivos, e ao contrário de muito do conteúdo mainstream, a Web Solitária parece, bom, humana.

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Apesar da sua aparente inutilidade, parte do conteúdo da Web Solitária acaba sendo incrivelmente lucrativa. Uma empresa chamada Ditto, por exemplo, procura referências de marcas em fotos públicas e, depois, vende essa informação para as corporações como dados demográficos valiosos.

Se recortadas ou incorporadas da plataforma de mídia social para um post em um blog (muitas vezes sem a permissão do usuário) com um título atrativo, as fotos podem alimentar de volta a plataforma de origem e viralizarem, como uma centopeia humana de conteúdo.

Paradoxalmente, a estranheza amadora que empurra os conteúdos para a Web Solitária pode também os ajudar a chamar a atenção em meio ao bolo de virais de sempre. Em poucas horas, “SmashMouthFan420” um usuário hipotético do YouTube, pode se tornar “Esse Cara”. Muitos blogs se sustentam escavando agressivamente a Web Solitária em busca de ouro (esse parece um bom momento para mencionar, em nome da abertura total, que eu ganho parte do meu sustento trabalhando para um blog).

Em um incidente bizarro, um vídeo licenciado pela Jukin Media (uma empresa que encontra e monetiza “conteúdo criado pelo usuário”), no qual um cachorro busca cerveja para o seu dono, parece ter sido re-editado para fazê-lo mais adequado para viralizar. O 1º vídeo é pixelado, gravado em modo vertical e tem apenas 283 visualizações. O 2º vídeo, que foi enviado pelo mesmo usuário quase duas semanas depois, é filmado em modo horizontal, tem um título mais descritivo, e a garrafa da cerveja foi virada para frente, em um close, para que a marca esteja claramente visível. Esse tem mais de 250 mil visualizações.

Quando algo da Web Solitária cruza para o lado mainstream, a exposição repentina pode ser um mindfuck para as pessoas inocentes que criaram o conteúdo. Elas também raramente lucram com isso. Simplesmente procure saber da história do “on fleek” ou “What are those?!” ou d’O Vestido.

A tsunami viral d’O Vestido atingiu McNeill por volta das 3 da manhã, na Escócia, quando ela foi acordada pelo seu celular explodindo de notificações. Ela estava no caminho de volta do casamento, dividindo um quarto de hotel com o seu irmão. Chocada, ela conta que tentou acordá-lo: “Liam, o Programa da Ellen tá me ligando, o Good Morning America tá me procurando, tá tudo muito absurdo!”. O irmão dela meio que não entendeu. “Ele tava tipo ‘meu Deus, fica quieta, eu tô tentando dormir’.”

Perturbada, ela saiu do quarto e foi até o saguão do hotel. Ela deitou no chão e assistiu a rolagem contínua de notificações. Eram muitas para conseguir acompanhar. Cada vez que ela tentava ligar o celular, ele travava pelo dilúvio de informação.

A maioria dos websites tem equipes direcionadas a lidar com esse tipo de tráfego intenso, mas até eles podem travar sob pressão. McNeil estava sozinha em um hotel desconhecido às 3 da madrugada.

O Vestido já estava se tornando viral no Twitter e no Tumblr quando o BuzzFeed, uma empresa avaliada em 1,5 bilhão de dólares, encontrou o post de McNeill e levou tudo ao limite. Mais cedo naquele mesmo dia, a história havia sido ofuscada por um flagrante nos noticiários locais que mostrava duas lhamas correndo pelas ruas de Sun City, Arizona. Mais tarde, Cates Holderness, uma “gerente de crescimento da comunidade” do BuzzFeed foi alertada sobre O Vestido por meio de uma dica no Tumblr do site. Ela levou cinco minutos para incorporar o post de McNeill ao seu artigo, junto com quatro frases e uma enquete: “quais são as cores desse vestido?”.

Quase que imediatamente o tráfego explodiu. Ao final da noite, o post já tinha mais de 10 milhões de visualizações. Ele se tornou o post mais popular na história do BuzzFeed, com mais de 38 milhões de visualizações até agora, e 670 mil acessos simultâneos no seu auge. O site investiu dinheiro e recursos na história, incluindo uma equipe técnica extra e 2 editorias inteiras, o tipo de coisa que se faz quando algum presidente morre. Eles enviaram um comunicado de imprensa assumindo responsabilidade pelo fenômeno. No dia seguinte, vitoriosos, eles celebraram com champanhe no escritório.

É difícil determinar exatamente quanto dinheiro O Vestido arrecadou ao todo para o BuzzFeed e para os outros sites de notícias, serviços de mídia social, grifes e lojas que vendem o vestido. McNeill, no entanto, não ganhou nada.

“Nós vendemos alguns álbuns no Bandcamp”, ela disse. “Mas no esquema das coisas, pensando em quanta gente estava acessando o meu blog, nós realmente não fizemos tanto dinheiro assim. Recebemos convites para shows, mas não arrecadamos muito.” Ao final, ela tinha mais de 30 mil seguidores no Tumblr, e foi isso. “Todo mundo acha que eu fiquei rica e que eu vou viver disso até o fim dos meus dias, mas não, não mesmo.”

Como dona dos direitos de copyright da imagem, Cecilia Bleasdale contratou especialistas para exigir pagamentos por ela. Até agora, a quantia que eles arrecadaram é menor do que o valor que cobraram pelo serviço. O Programa da Ellen convidou todos os envolvidos para Los Angeles para participarem do programa. Durante as gravações, Grace e o seu noivo, Keir, ganharam uma viagem para o resort Spice Island Beach, em Granada, e os “amigos do Shutterfly” os presentearam com uma maleta com 10 mil dólares. Bleasdale insistiu que eles guardassem o dinheiro para si em vez de dividirem com McNeill. O Vestido se tornou uma fonte de tensão entre Bleasdale e a sua filha, e as levou a ter um breve conflito.

Recentemente, o post original, no Tumblr, desapareceu por causa de um pedido de copyright. O post mais famoso da história do BuzzFeed foi instantaneamente corrompido. A janela incorporada se tornou uma caixa vazia com uma mensagem “este post se foi”.

A caixa foi rapidamente substituída por uma imagem do vestido, ainda que permaneça corrompido em pelo menos 1 outro artigo sobre o assunto. De acordo com o parceiro de Bleasdale, Paul Jinks, o BuzzFeed finalmente obteve a licença legal para usar a foto, quase 1 ano depois do post ter sido publicado. Eles não pagaram bem. “Eu não estou autorizado a revelar a quantia exata,” ele disse. “Mas eu não usaria a palavra considerável.” O BuzzFeed confirmou em um e-mail que eles compraram a licença da imagem de Bleasdale, mas não comentaram a respeito de qual havia sido a compensação nem estavam dispostos a conversar mais sobre o assunto. Nenhuma dessas mudanças foi atualizada no post. A imagem continua creditada à Swiked. Não foi uma decepção completa, apesar de tudo. Tanto Bleasdale quanto McNeill receberam um par de cuecas com estampa do Vestido.

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É um pouco desconcertante que o post mais popular de um dos canais de nova mídia mais bem-sucedidos seja um mero post incorporado de uma plataforma de outra empresa, que consistia em uma imagem retirada de um outro post de outra plataforma, que, por sua vez, foi compartilhado sem o conhecimento ou a permissão da pessoa que tirou a foto.

Pensar que nenhuma das pessoas envolvidas foi compensada pelo seu trabalho e que o post foi rapidamente destruído pelas arcaicas leis de direitos autorais de uma empresa concorrente não pega bem para o futuro de negócios que exploram esse tipo de conteúdo.

Essa dinâmica também contribui para desbotar as fantasias de universos alternativos, já que os vídeos íntimos e desarmados que eu encontro enquanto surfo pela Web Solitária são amplificados, de repente, para o status de virais icônicos.

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Mesmo que essa imensa centralização da web por corporações seja alarmante, parece que ela é construída sobre uma base imprevisível. Muitas das empresas que compõem a web contemporânea poderiam muito facilmente desmoronar e serem substituídas por algo… melhor? …mais sinistro? Considerando as inúmeras camadas de exploração em jogo, é difícil imaginar como tudo isso poderia ficar pior. Que momento maravilhoso para estar vivo! (Exceto para aqueles que têm investido muito dinheiro no monopólio das bolhas das empresas de tecnologia.)

Até o inevitável apocalipse do conteúdo, nós poderemos, mesmo que temporariamente, fugir dos fluxos atrofiadores de cérebros que são os nossos feeds, e pular, com apenas alguns cliques, para a Web Solitária.

 

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História originalmente publicada em Fusion e compartilhada em Noosfera com autorização do autor.
Tradução e edição por Caroline Barrueco. Revisão por Luís Cunha e Luiza Hecker.

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