Entre os dias 23 de outubro e 1º de novembro, foram realizados os I Jogos Mundiais dos Povos Indígenas em Palmas, capital do Tocantins. Organizado pelo Governo Federal, com o bonitinho tema “Agora Somos Todos Indígenas”, o evento reuniu 29 etnias brasileiras e de outros 22 países, entre eles Nova Zelândia, Rússia, Mongólia e Etiópia. As tribos demonstravam empolgação com suas coreografias e cantos, e inclusive treinavam nas horas vagas para as competições de corrida de tora, arco e flecha, cabo de guerra, e outras modalidades. Quem fez feio mesmo foram os não-indígenas.
Durante as visitas que fiz à cidade olímpica, observei cenas e diálogos que fizeram minhas bochechas corar de vergonha alheia. Durante uma tarde de jogos, fitei um homem tocantinense que beirava seus 50 anos apontando e falando: “Olha, filha, um índio”. Em outro momento, ele disse em tom de piada: “Ali filha, um filhote de índio”. Sua criança, que tinha aproximadamente 8 anos, apresentava traços típicos da mistura goiana e paraense que formou o povo de Tocantins. Como muitos pais presentes, ele resolveu levar sua família para o terceiro dia dos I Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, já que era um domingo de clima ameno na sempre ensolarada Palmas. Durante o verão não é difícil que os termômetros apontem 40º C. Nesse dia, a Defesa Civil teve que conter o acesso às arquibancadas porque a lotação tinha ultrapassado o limite de 5 mil, o que poderia comprometer a estrutura.
Me diverti com a reação da menina, porque ela não compartilhava da visão do pai de que os índios se distinguiam tanto no meio da multidão.
Em um certo momento, ela apontou para uma outra criança bem loira que estava brincando nas instalações do Corpo de Bombeiros e perguntou: “ela é índia, papai?”.Tive um anseio de responder que ela era muito mais índia do que a outra menina, mas imaginei que ela e seu pai provavelmente tomariam como um insulto.
Durante o tempo em que estive nos jogos, o que mais me chamou a atenção foi isso: o público que se comportava como se estivesse em um circo, e perpetuava preconceitos com piadas racistas e negação da nossa própria ancestralidade.
“Pra mim eles não são índios não, têm até celular”, “esses índios gostam mesmo é de cachaça”, “hoje é dia de programa de índio”, “olha o pernão daquela índia, que gostosa”. Presenciei inúmeras variações dessas frases, e elas provaram que o público não está preparado para aceitar a inclusão digital dos povos indígenas, para aceitar seus costumes, como a nudez dessexualizada, e para compartilhar os privilégios de não ser indígena no Brasil.
Foi muito contraditório escutar dessas pessoas que os índios eram ingênuos e ainda assim presenciar tanta interpretação imbecilizada de tradições milenares.
No segundo dia de jogos, a parede do refeitório construído para os índios cedeu, ferindo quatro pessoas e impossibilitando a distribuição das refeições. Coincidentemente, fui almoçar em um restaurante conhecido da cidade em que um ônibus com 50 atletas estacionou para negociar o almoço deles. Já era mais de 14h e o restaurante estava quase vazio. Só um índio saiu do ônibus para conversar com a dona do estabelecimento, explicando que eles não tinham dinheiro, mas que um certo “Luís” pagaria a conta mais tarde. A dona hesitou e, como de costume, não aceitou a venda fiada. O índio levou sua fome de volta ao ônibus e foi procurar outro local.
Poucos minutos depois, chegaram cinco organizadores do evento para almoçar, identificados com seus devidos crachás. A proprietária conversou com eles sobre a situação, e eles confirmaram que os índios estavam falando a verdade. Ela pediu desculpa, e o organizador respondeu: “Relaxa, eles é que são burros demais para negociar”. Fiquei perplexa escutando esse diálogo. A falha era obviamente dos organizadores que os mandaram almoçar sem nenhum dinheiro, e não uma ingenuidade indígena. No dia seguinte, voltei ao restaurante e a dona comentou comigo que um desses organizadores tinha aparecido lá com um machucado. Isso porque os índios se revoltaram com a desorganização e atearam flechas contra eles, que se refugiaram em um ônibus. Deveriam ter feito isso também com Pedro Álvares Cabral, quem sabe ele não voltava correndo para a sua caravela.
Presenciei outro episódio extremamente bizarro, também no segundo dia. Nas instalações da I Feira Mundial de Artesanato Indígena, aconteceu uma breve cerimônia da SEBRAE. Teve uma pequena apresentação de uma tribo brasileira e entrega do troféu Arara Azul para o líder indígena Marcos Terena, outro organizador do evento. O que me constrangeu foi a presença de duas modelos contratadas para posar, sorrir e ostentar cocares indígenas. Fiquei com muita vergonha de ver o Brasil assinando essa pequena demonstração de apropriação cultural e objetificação da mulher no meio de povos de todos os lugares do mundo.
Na noite do segundo dia de evento, foi realizado o desfile de “beleza indígena” com representantes mulheres de cada tribo. Para escolher quem desfilaria no tapete vermelho estendido na arena, as tribos fizeram eliminatórias internas. Essa foi a primeira vez em que ouvi falar de competição de beleza em tribos indígenas. Ou seja, o contato dos índios com as novas tecnologias ocidentais é um motivo de estranhamento, mas enfiar neles esse costume de branco burro goela abaixo pode.
Tentei entrevistar alguns participantes do evento, mas eles ficavam acuados com a presença de jornalistas. Conversei com dois índios da tribo Terena, entretanto, eles disseram que mesmo que gostassem muito de falar sobre o tratamento dado a eles pela organização, ninguém da sua etnia poderia conceder entrevistas porque um dos organizadores era também da etnia Terena. Já em um diálogo na margem do lago de Palmas com três jovens jogadores Asurini que treinavam arco e flecha, descobri que as acomodações estavam falhas. As tendas do dormitório esquentavam muito o espaço, que não tinha sequer ventiladores, e o chão era de areia, e não de barro batido como foi solicitado. No mais, eles gostaram de participar do evento.
Penso que poder entrar em contato com etnias diversas facilita a articulação entre os indígenas e estimula a luta organizada. Tanto é que eles conseguiram escalar o debate sobre a demarcação de terras indígenas e a PEC 215 em todas as rádios da cidade.
Mas falta primeiro reconhecermos que somos mesmo ascendentes e semelhantes, depois temos que conseguir identificar nossos privilégios, para quem sabe podermos afirmar algum dia que “Agora Somos Todos Indígenas”.