Como se Comprovou, Graças ao Crochê, que Euclides Estava Errado

Durante anos, estudiosos e entusiastas da matemática sofreram para imaginar a geometria hiperbólica. Até que um dia eles começaram a fazer crochê.

Por muito tempo só se conhecia dois tipos de geometria: a euclidiana, e a esférica.

Euclidiana é a geometria mais popular, é a geometria dos quadrados, dos planos, dos ângulos retos, e a que se acredita que represente o próprio tecido do nosso universo. Mas não temos tanta certeza disso, porque é muito difícil medir com precisão o formato do universo, já que ele é imenso e nós só conseguimos medir uma minúscula parte. Seria como uma formiga tentar medir a curvatura do planeta Terra. O planeta vai parecer plano para ela, mas isso é só porque ela é muito pequena.
A geometria esférica é a das esferas.

Uma das regras da geometria euclidiana é que, dada uma reta e um ponto fora dessa reta, só existe uma única maneira de traçar uma segunda reta que passe pelo ponto e que seja paralela à primeira reta, qualquer minúscula inclinação fará com que as duas retas se cruzem em algum momento. Apesar de intuitiva essa regra é muito difícil de ser provada.

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Quinto postulado de Euclides: “dada uma reta e um ponto exterior, existe somente uma reta contendo o ponto e paralela à reta dada”.

Quando matemáticos ao redor do mundo tentaram provar que essa regra era verdadeira (ou falsa) eles acabaram chegando à conclusão de que precisaria existir um outro tipo de composição espacial, onde infinitas retas pudessem passar pelo mesmo ponto “X”, e sem jamais cruzarem a reta “A”.

No início do século dezenove foi comprovada, através de cálculos e deduções matemáticas, a existência de um terceiro tipo de geometria: a geometria hiperbólica. Um plano hiperbólico é como uma esfera ao contrário, no sentido de que não tem fim, não é fechado em si mesmo, e aumenta indefinidamente sua curvatura de forma exponencial.

É muito interessante ver como formas geométricas podem ser “descobertas” e não “inventadas”, pelo fato de que não importa quem as descubra, elas sempre levam aos mesmos resultados e se comportam da mesma maneira. Os teoremas de Pitágoras, por exemplo, foram descobertos muitas vezes, em diferentes épocas, e por diferentes pessoas.

“Matemática é uma linguagem que possui uma lógica interna. Mas o que é tão impressionante sobre essa linguagem é que ela parece descrever a maneira como o mundo funciona – não apenas às vezes, não apenas aproximadamente, mas invariavelmente, e com uma exatidão infalível.”–  John D. Barrow em The Mathematical Universe

Por mais que todos os cálculos a comprovassem, a geometria hiperbólica ainda era totalmente contraintuitiva e difícil de imaginar. Suas representações normalmente eram assim:

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Representação de um plano hiperbólico.


Onde todos os semicírculos são, na verdade, retos, e tem o mesmo tamanho entre si! A curvatura do próprio espaço que se expande, mas ninguém sabe como desenhar isso, porque não temos como fugir do fato de que o papel/tela é uma superfície euclidiana. Para sermos exatas teríamos que distorcer a superfície do papel.

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Depois que o matemático Donald Coxer explicou modelos de geometria hiperbólica para Escher, ele passou a usar esses modelos em diversas de suas obras. Naquela época a geometria hiperbólica era apenas conceitual, me pergunto se Escher conseguia compreender essas representações para além das limitações do papel.

Até que em 1997, a professora de matemática Daina Taimina descobriu que existe, sim, uma maneira de se construir modelos de planos hiperbólicos no nosso mundo 3D, e é através da centenária arte do crochê.

O crochê, diferente de qualquer outra técnica, permite que a sua estrutura cresça de forma exponencial, simplesmente acrescentando dois pontos a cada ponto existente, assim naturalmente se criam curvaturas negativas. Os modelos em crochê são macios e moldáveis, e permitem que a gente encoste e brinque com eles, o que facilita muito a real compreensão de tudo.

Por exemplo, se estivesse traçada em um plano hiperbólico, a linha abaixo seria reta, e não curva, como obviamente parece. Mas fica difícil entender de verdade porque, como antes, essa figura é uma representação hiperbólica em uma superfície euclidiana (a tela do seu computador), e na geometria euclidiana esse traço é curvo.

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Mas quando traçamos uma reta numa superfície hiperbólica de crochê, é possível, finalmente, entender como ela pode parecer curva mesmo sendo perfeitamente reta.

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Exemplo de como linhas retas se comportam em um plano hiperbólico.

Também aproveitei para costurar o quinto postulado de Euclides na minha superfície hiperbólica de crochê, pra mostrar como é possível que infinitas linhas retas passem pelo ponto “X” sem jamais cruzarem a linha reta “A”:

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“Aqui, em lã, através de uma arte feminina doméstica, está a prova de que o mais famoso postulado matemático está errado.” Margaret Wertheim, física, sobre planos hiperbólicos de crochê.

Por mais de cento e cinquenta anos, matemáticos acreditavam que não existisse nenhum objeto no nosso mundo que fosse naturalmente hiperbólico. Mas planos hiperbólicos sempre existiram, as pessoas só não estavam procurando nos lugares certos.

Alfaces, recifes de coral, algumas pétalas de flores, algumas lesmas marinhas, são todas representações naturais de planos hiperbólicos, estruturas matemáticas super complexas e difíceis de serem reproduzidas pelos seres humanos.

Apesar de ser a melhor forma que conhecemos de representar a maioria dos fenômenos do nosso universo, a matemática ainda nos parece misteriosa e difícil. Não deveria ser assim, deveríamos ser capazes de perceber a matemática de forma muito mais natural e intuitiva. É por isso que planos hiperbólicos de crochê são maravilhosos, porque retiram um assunto do nível abstrato, quase inimaginável e o colocam no mundo real. Sem falar que unem uma arte tipicamente feminina, e consequentemente subjugada, à mais nobre das ciências!

 

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Se você quiser saber mais sobre geometria hiperbólica sugiro o podcast On Being, ou a TED Talk com a Margaret Wertheim, que tem um projeto lindo de construção de um recife de coral hiperbólico de crochê.

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