Nem Vítimas nem Escravas: Conheça as Mulheres que Fabricaram o seu Celular

Início da manhã em Shenzhen, cidade na zona industrial da China, uma longa fila se forma na porta de uma fábrica de aparelhos eletrônicos. Esperando para serem entrevistadas e, quem sabe, contratadas, estão meninas vindas de zonas rurais. A maioria é menor de idade e tem entre 16 e 18 anos. Se contratada, cada uma delas irá trabalhar mais de doze horas por dia, terá suas refeições reguladas pela fábrica, dormirá em um dormitório coletivo com outras trabalhadoras e ganhará cerca de 260 reais por semana.

Em 2014, mulheres representavam 80% da força de trabalho de Nanshan, um dos distritos de Shenzhen. Alguns dizem que a preferência por mulheres se dá porque mulheres têm “mãos delicadas e pequenas, e são mais calmas para lidar com os minúsculos componentes eletrônicos”, mas para a antropóloga chinesa Pun Ngai, “a máquina de produção” se interessa principalmente pelo corpo feminino por ser “imaginado como mais obediente, tolerante e conformado com a fábrica”. O que importa é que quem quer que seja contratado, seja submisso e obediente, e sabemos que essas características já são moldadas nas mulheres pela sociedade patriarcal. Ms. Tang, a diretora de qualidade da fábrica em questão, confirma: “eu não perco tempo fazendo perguntas, eu julgo mais a atitude. São as boas maneiras, honestidade e obediência que eu mais valorizo.”

E já que a política de identidades é sempre uma política de diferenças, as trabalhadoras que forem contratadas serão lembradas diariamente da sua feminilidade pelos seus superiores – em geral homens – com comentários do tipo: “você é uma garota, você não deveria desafiar seus superiores falando em voz alta. Você é uma garota, um dia você vai ser a esposa de um homem, e mãe de meninos, você deveria cuidar do seu trabalho como um dia vai cuidar da sua família.”  Pun Ngai percebeu que graças a esse tipo de observação, “mulheres, consciente ou inconscientemente passam a perceberem a si mesmas como um sexo inferior, com um corpo frágil.”  

 

FoxConn, a empresa responsável por fabricar os produtos da Apple.

Não é difícil encontrar pela internet fotos de fábricas imensas lotadas de trabalhadoras chinesas usando uniforme. E sabemos que a maioria dos equipamentos eletrônicos vendidos pelo mundo é fabricada em lugares como esses. Geralmente, trabalhadoras de linhas de montagem chinesas são tratadas pela grande mídia e construídas no imaginário popular como se fizessem parte de uma massa homogênea sem rosto e sem individualidade – mulheres-robô, trabalhadoras escravizadas, vítimas de um sistema opressor.

Apesar de ser mais automático generalizar assuntos que parecem distantes da nossa realidade, este tipo de estereótipo é nocivo, porque mais uma vez coloca mulheres como sujeitos passivos na história do mundo e de suas próprias vidas. É importante irmos além do olhar ocidental viciado, e para isso precisamos falar sobre o contexto multifacetado que possibilitou essa imensa onda de migração de mulheres trabalhadoras.

Desde a morte de Mao, no fim dos anos 70, a China começou a adotar medidas de abertura de mercado, e a se transformar no que é hoje: a fábrica do mundo, produzindo e exportando recursos naturais, mão de obra barata e todo o tipo de mercadoria. O capitalismo chegou para ficar, e com ele começou a surgir uma nova identidade social: as dagongmei ( “irmãs que trabalham para o chefe” em tradução literal), que em geral, são meninas solteiras, de famílias rurais, que vão para as zonas industriais e trabalham na linha de montagem de grandes fábricas multinacionais. Uma característica importante dessas trabalhadoras é a transitoriedade. Elas, em geral, voltam aos seus vilarejos de origem depois de alguns anos, já que como legado do controle socialista, pessoas de áreas rurais não podem mudar oficialmente seu local de registro, só podem continuar nas cidades enquanto estiverem empregadas. Assim, estão para sempre conectadas ao local de nascimento, não tendo direito a tratamento médico, educação ou outras vantagens que moradores oficiais de centros urbanos podem acessar.

Para entender as complexidades dessa nova identidade social, a antropóloga chinesa Pun Ngai, mudou-se para Shenzhen, uma cidade em que trabalhadores temporários formam cerca de 90% da população. Durante nove meses Pun Ngai trabalhou na linha de montagem de uma fábrica de eletrônicos e morou junto com outras trabalhadoras.

Essa experieência deu origem ao livro Made in China: Women Factory Workers in a Global Workplace, no qual ela narra sua experiência e olha mais de perto para as complexidades das dinâmicas do dia a dia desse tipo de fábrica.

A autora observa que quando uma menina resolve migrar para a cidade e trabalhar em uma fábrica, ela sabe muito bem onde está se metendo. Ela sabe das condições de trabalho e das longas horas de expediente. E o que é visto pela sociedade ocidental como “trabalho escravo” é, para elas, uma forma de libertação. “A filha” já ocupa a mais baixa posição na hierarquia da família nuclear. Além disso, por imaginar que um dia ela irá casar e assim passar a fazer parte da família do marido, a posição de filha chinesa de família rural também tem um aspecto de não-pertencimento, como se ela estivesse de “passagem” em sua própria família.

Ao escolher quebrar o trajeto já imaginado para sua vida – trabalhar no campo, casar e ter filhos –  com a ida para a cidade grande, a menina escolhe tomar as rédeas do seu destino, escolhe descobrir e construir sua identidade sozinha, em um ambiente novo e desafiador. Trabalhando nas fábricas, a filha, antes marginalizada na própria família, recebe um novo status, e passa de membro mais subjugado da família, a seu principal provedor.

Além de ajudar a família financeiramente e de comprar objetos para a construção de sua nova identidade urbana, é comum que a menina queira guardar um pouco do seu salário para si, e assim garantir sua segurança e autonomia depois de casada.

Essas pessoas são seres complexos e fortes, que encontram brechas de resistência, e táticas de sobrevivência em vários detalhes do capitalismo sufocante dos grandes centros urbanos.

Mas o sistema industrial não aceita individualidades, e é todo construído para incorporar rapidamente os corpos rurais em suas engrenagens. Desde que é contratada, sem tempo a perder, cada trabalhadora é responsável por uma função, apenas uma, que repete sem parar durante seu expediente. O tempo de cada ciclo é medido com precisão de segundos, a distância entre uma pessoa e outra, assim como entre a cadeira e a mesa, são cuidadosamente planejadas. O ambiente de trabalho tem as janelas vedadas para evitar qualquer contato com os elementos ou distração com o mundo exterior. A máquina disciplinadora quer produzir corpos sem mentes. E por não terem mentes, eles são substituíveis.

Ironicamente isso acontece não apenas com o corpo feminino, mas com todos os produtos do capitalismo. Incluindo os aparelhos eletrônicos que as dagongmei ajudam a fabricar. A roda do consumo precisa continuar girando, e, para isso, precisamos substituir nossos aparelhos eletrônicos regularmente. Para que sejam facilmente substituíveis, eles precisam ser esvaziados de afeto ou qualquer tipo de personalidade. E precisam ser úteis, mas incompreensíveis para nós.

A fábrica então tenta impor seu tempo, transformando as mulheres em máquinas de produção eficientes. Mas o tempo capitalista, que busca o progresso sem fim, se choca com o tempo – cíclico – do corpo feminino, que evoluiu durante milênios em sincronia com toda a natureza, e que não se deixa corromper por uma situação tão antinatural quanto a que as trabalhadoras estão vivendo na rotina da fábrica.

Pun Ngai percebeu que depois de começarem a trabalhar na linha de montagem, as mulheres passam a ter fortes dores menstruais, e é comum que desmaiem de dor e precisem ser levadas para hospitais. Essas dores passam a ocorrer só depois que elas se inserem na rotina da fábrica e não antes, quando viviam no campo. Em seu livro “The Wise Wound” a poeta Penelope Shuttle é categórica ao dizer que “suponhamos que a sociedade seja uma mentira, a menstruação é um momento de verdade, que não admitirá mentiras.” Por mais que elas tentem se conformar ao desumano ritmo das fábricas, seus corpos gritam, não admitem que seu tempo seja distorcido. Para Pun Ngai “isso obviamente expõe tanto a violência do tempo industrial quando sua incapacidade de transformar o corpo feminino em um robô trabalhador.”

A autora relata diversos outras situações em que a fábrica falhou em sua estratégia disciplinadora: como quando em momentos em que a velocidade do trabalho se tornava insuportável para os corpos já exaustos, sem dizer uma palavra – já que conversar não era permitido na linha de montagem – todas as mulheres iriam, de repente, diminuir seu ritmo de produção. Todas as mesmo tempo. Demonstrando uma resistência coletiva ao supervisor da linha, que tentaria persuadí-las a trabalhar mais rápido. Mas todas juntas, ignorariam o pedido, e continuariam a deixar as peças se amontoarem em pilhas. Até que o único recurso do supervisor fosse chamar alguém para medir esse novo tempo, e reajustar o ritmo de toda a linha de produção.

Ou então, em momentos em que a velocidade estivesse muito rápida, ou os valores de bônus muito baixos, diversas mulheres alegavam estarem doentes ao mesmo tempo. Desestruturando a linha de montagem.

“Sonhos, gritos, desmaios, dores menstruais, reconstrução da própria identidade, posturas desafiadoras, diminuição do ritmo de trabalho, brigas, fugas, e até mesmo petições e greves, são pontos e linhas de comportamentos de resistência, e formam uma cartografia de resistência que, inevitavelmente, desafia as estruturas de poder e controle.”

Longe de serem vítimas indefesas, as dagongmei são agentes das próprias vontades e estão em constante renegociação de seus papéis sociais. A cada dia, elas resistem ativamente às forças de tripla exploração: de um sistema social que as impede de escolher onde morar, de um sistema patriarcal familiar que as exclui e de um sistema capitalista que explora seus corpos até o limite da exaustão. Percebermos suas potências e suas individualidades é importante para construirmos um imaginário popular de culturas orientais habitado por mulheres complexas e fortes.

 

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