Experienciamos o mundo através dos nossos cinco sentidos, então tudo o que não pode ser detectado com eles, costuma passar despercebido.
É o caso das bactérias, que por serem microscópicas, são totalmente ignoradas pela maioria das pessoas. Mas elas estão por toda a parte, e são extremamente importantes para o bom funcionamento de nós mesmos.
Bactérias foram as primeiras formas de vida a surgirem no planeta Terra, e são organismos unicelulares que comem, respiram, se reproduzem e se movem. Elas vivem dentro de vulcões, dentro de geleiras glaciais, no mar, nas árvores, em cima de cada superfície da sua casa, e também dentro do seu corpo. E tudo bem.
Até o conceito de “nós mesmos” fica confuso se pararmos para pensar que o corpo humano tem a mesma quantidade de bactérias e de células humanas. Somos basicamente uma colônia de bactérias ambulante.
E essa colônia começa a se formar logo no começo da nossa vida, no útero somos totalmente livres de bactérias mas durante o parto e nos primeiros anos de vida, somos rapidamente povoados por milhares de espécies diferentes, a procura de casa e comida.
Esses seres evoluiram junto com a espécie humana, em uma relação importante de simbiose e ajuda mútua.
E nosso corpo sabe a importância de manter uma relação amigável com seu ecossistema. O leite materno, por exemplo, contém um tipo especial de carboidrato chamado oligossacarídeo, componente que os bebês não conseguem digerir. A razão disso é que oligossacarídeos são a principal fonte de alimento de bactérias que são extremamente benéficas para o sistema imunológico dos bebês. Dessa forma o leite materno alimenta as boas bactérias e ajuda o bebê a criar uma microbiota favorável, que o protegerá durante a vida.
Por ocuparem o território antes, nossas habitantes internas não deixam espaço para outras espécies que queiram morar lá, e isso acaba resultando numa importante função delas: “proteger” nosso corpo de bactérias intrusas, que muitas vezes causam doenças.
Também existem outras funções relacionadas aos nossos micróbios, como por exemplo produzir vitamina K, que faz com que o sangue coagule, e que nós não produzimos sozinhos. Ou quebrar as fibras existentes em morangos e em algas marinhas, que não seriam digeríveis de outra forma.
Uma espécie de bactéria chamada lactobacilo, que vive em geral no estômago humano, tem uma função muito importante: quebrar a lactose, o principal açúcar contido no leite. Quando a pessoa está prestes a parir, os lactobacilos migram do estômago para a vagina.
Eles fazem isso porque querem colonizar um novo território, e assim propagar a espécie. Mas essa migração não poderia vir mais a calhar, já que com a ajuda dos seus novos habitantes, o bebê vai poder extrair muito mais energia do leite que recebe de sua mãe.
No caso da necessidade de uma cesariana, o pacote de microorganismos feito especialmente para seu bebê, não é entregue, mas outras bactérias de outras partes do corpo da mãe acabam povoando o bebê.
As bactérias nos ajudam e protegem, e em troca, nós fornecemos comida e casa para elas.
Com os outros animais não é diferente, os cupins só conseguem digerir madeira graças à uma espécie de bactéria que vive em seus estômagos, e as vacas só conseguem quebrar celulose, que é super pesada e difícil, também graças às bactérias que vivem nos seus cinco estômagos.
Aliás, a maioria dos mamíferos que come vegetais precisa da ajuda de bactérias. E é por isso que a primeira refeição dos coalas é o cocô da própria mãe. Assim eles recebem colônias inteiras prontas para ajudá-los a digerir as folhas de eucalipto.
Os animais têm seus próprios microbiomas, e mesmo entre humanos, as espécies variam massivamente, formando ecossistemas riquíssimos e harmoniosos. Apesar disso, muita gente quando ouve falar de bactérias só pensa em doenças. E nisso elas também são ótimas.
A bactéria que causa tuberculose, por exemplo, faz o hospedeiro tossir, e assim ela se espalha e consegue infectar outras pessoas.
Até o começo do século passado muitas pessoas morriam por doenças causadas por bactérias. Qualquer simples machucado poderia causar uma infecção fatal.
Até um certo dia, em 1928, quando o microbiologista Alexander Fleming, casualmente revolucionou a medicina, ao voltar para seu laboratório e descobrir um pedacinho de pão caído em uma das diversas colônias de bactérias que ele estava estudando. O pão estava mofado e as bactérias, todas mortas. E foi assim que Fleming descobriu a penicilina, o primeiro dos antibióticos. Uma droga milagrosa, que salva até hoje as vidas de milhões de pessoas.
A penicilina é um componente encontrado no fungo comum, aquele fungo verde azulado que aparece em comidas estragadas. Esses fungos, para competir com as bactérias por espaço dentro do nosso corpo, usam como arma biológica uma substância que impede as bactérias de formarem suas paredes celulares e assim elas acabam se suicidando.
Sem antibióticos não teríamos cirurgias cardíacas, transplante de órgãos ou fertilização in vitro.
Mas uso de antibióticos está cada vez mais comum para tratar até doenças que nem tem origem bacteriana, principalmente durante a infância. Por exemplo, é muito comum que crianças tomem antibióticos para tratar tosses, mas maioria dos casos de tosse é causado por vírus, e não bactérias, e têm um ciclo próprio que acaba depois de cerca de dez dias. Nesse caso o antibiótico não vai ter efeito algum, mas a tosse vai diminuir naturalmente com o fim do ciclo. Só que ninguém espera todo esse tempo, ainda mais se for seu filho ou filha quem estiver tossindo sem parar por uma semana.
Estima-se que nos Estados Unidos entre 60 a 80% das crianças que procuram médicos com garganta inflamada ou tosse, recebem prescrição de antibióticos. Mas só de 5 a 10% realmente precisariam tomar o medicamento. Muitos fatores estão envolvidos nisso: a falta de tempo dos médicos para fazer exames detalhados e consultas cuidadosas, a pressa por um diagnóstico – se a criança estiver mesmo com uma infecção, é importante que seja tratada o mais rápido possível – e principalmente, a ideia de que não existe nenhum problema em se tomar antibióticos quando não são necessários. Mas infelizmente esse não é o caso.
Antibióticos comuns matam qualquer bactéria, não apenas as nocivas. E assim nosso ecossistema sofre modificações, muitas vezes irreparáveis.
Quando ingerido, o antibiótico mais comum aqui no Brasil, aquele líquido rosa neon chamado Amoxicilina, é absorvido pelo estômago e se espalha por todo o corpo através da corrente sangüínea, matando milhões de bactérias pelo caminho. Incluindo as bactérias que nos ajudam.
“Quando você toma um antibiótico de largo espectro, que é o tipo mais prescrito, pode ser que micróbios raros, ocasionalmente, sejam eliminados completamente. O ponto crítico é que uma vez que a população chega a zero, não há como voltar atrás. No seu corpo, essa espécie está agora extinta”. Martin J. Blaser, professor de microbiologia da Universidade de Nova York.
Quando tomamos antibióticos, grande parte das bactérias de uma determinada espécie morrem, mas por alguma mutação ou outro motivo, algumas não são afetadas.
Essas bactérias sobreviventes, com muito espaço e nutrientes de sobra – já que sua vizinhança foi dizimada – podem crescer e se multiplicar livremente. E assim se cria uma comunidade de bactérias que são resistentes a antibióticos.
Atualmente existem algumas superbactérias, que são resistentes a todos os antibióticos que temos no mercado. Nenhum antibiótico consegue matá-las, e por isso elas são extremamente perigosas e temidas. É o caso de C. Difficile, ou C. Diff (o nome vem da palavra ‘difícil’, mesmo) uma espécie que, em pequena quantidade, já habita algumas pessoas, e é inofensiva, mas quando tem espaço de sobra ou quando o sistema imunológico está enfraquecido, consegue prosperar e dominar todo o ambiente. Cada vez mais pessoas têm morrido com infecções de C. Diff. Em 2011 foram 15 mil mortes, apenas nos Estados Unidos.
“Resistência antimicrobiana está acontecendo em cada comunidade, em cada unidade de saúde, e em práticas médicas em todo o país. Pelo menos 2 milhões de pessoas por ano nos EUA têm infecções que são resistentes aos antibióticos, e 23.000 morrem. Isto é o que acontece quando os micróbios são mais espertos que os nossos melhores antibióticos. (…) Nós estamos enfrentando consequências catastróficas [pelo uso excessivo de antibióticos].” Dr. Tom Frieden, Diretor do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (DCD).
Cada vez que tomamos antibióticos estamos mais perto da temida era pós-antibióticos. Um momento em que só sobrarão bactérias resistentes, e as drogas que conhecemos não farão mais efeito.
E mesmo que diminuamos o uso de antibióticos, ainda consumimos antibióticos quando consumimos produtos não-orgânicos de origem animal. Isso porque nos anos 40 se descobriu que animais alimentados com antibióticos engordam mais, e por isso a maioria dos animais criados em cativeiro no Brasil recebem antibióticos em doses subterapeuticas durante toda a vida, misturados à água ou comida. Não para tratar ou prevenir doenças, mas para deixá-los mais gordos.
E existe aí outra questão interessante: se as mesmas drogas que as crianças tomam corriqueiramente, são dadas para animais com intuito de deixá-los mais gordos, quais seriam as consequências disso nas crianças? Será que o aumento do índice de obesidade estaria relacionado ao uso de antibióticos? Parece que sim.
O que acontece é que as bactérias têm um papel fundamental na digestão e absorção de energia dos alimentos. Quando chega ao intestino grosso, o alimento não pode mais ser digerido, e seria totalmente descartado pelo corpo, mas algumas bactérias se alimentam desses dejetos, e com isso, produzem líquidos que, por sua vez, podem ser absorvidos por nós.
Cerca de 20% de todas as calorias que absorvemos dos alimentos, nos é dada pelas bactérias que vivem nos nossos intestinos.
E se as colônias de bactérias depois de sobreviverem a vários ciclos de antibióticos se tornassem, não apenas mais fortes e resistentes, mas também mais eficientes em extrair calorias dos alimentos? Parece que é por isso que os animais, mesmo comendo a mesma quantidade de ração, engordam mais quando estão sob uma dieta de antibióticos. Será que o mesmo acontece com as pessoas?
Uma pesquisa feita pelo professor de medicina pediátrica Dr. Leonardo Trasande, analisou os dados de um estudo que acompanhou mais de 11 mil crianças britânicas, desde 1991. Ele percebeu que crianças que receberam antibióticos nos primeiros seis meses de vida, tinham mais chances desenvolver obesidade do que as que não receberam.
Crianças nascidas através de cesarianas também eram relativamente mais pesadas. Uma das possíveis razões disso é que ao fazer cesariana, a mãe precisa ingerir antibióticos, que são passados, através do leite, para a criança.
Em outro experimento a pesquisadora Laurie Cox, alimentou ratos com doses subterapeuticas de antibióticos.
Os ratos que receberam antibióticos pesavam de 10 -15% a mais e tinham de 30 a 60% de gordura total a mais. Então Cox criou uma nova geração de ratos em um ambiente esterelizado, totalmente livre de bactérias e os dividiu em dois grupos. Um dos grupos foi povoado, através de transplantes fecais, pelas bactérias retiradas dos intestinos dos ratos que receberam antibióticos, e no outro grupo, ela transferiu as bactérias dos ratos que não receberam antibióticos.
Os ratos que foram povoados com as bactérias dos ratos tratados com antibióticos ganharam mais peso e mais gordura corporal, mesmo sem ter consumido antibióticos diretamente. Dessa forma se mostrou, pelo menos em ratos, que a obesidade está diretamente conectada às espécies de bactérias habitantes do intestino grosso.
Transplantes fecais, que são exatamente o que você está pensando – milkshakes de cocô passados através de pílulas ou enema, de uma pessoa a outra – têm se tornado cada vez mais comuns nos últimos anos, como um tratamento bastante simples e eficiente contra infecções persistentes de superbactérias, mas parece que em breve usaremos essa técnica para tratar muitas outras doenças, ou simplesmente para aumentar a diversidade das nossas espécies internas.
Um estudo publicado no New England Journal of Medicine, mostrou que pessoas com infecções recorrentes de C. Diff tratadas com transplante fecal tiveram taxa de cura de 94%, e pacientes tratados com antibióticos convencionais tiveram apenas 30% de taxa cura.
A ideia é repovoar o intestino com colônias inteiras de novas espécies, e assim deixar pouco espaço para C. Diff prosperar.
Mas será que poderíamos usar transplantes fecais para outros fins, como por exemplo para reverter obesidade, repovoando o intestino de pessoas obesas com bactérias de pessoas magras?
Recentemente foi divulgado o caso de uma paciente que se tornou obesa depois de passar por um transplante fecal de uma doadora obesa. Claro que existem muitos fatores conectados à obesidade: genética, hábitos alimentares, estilo de vida… mas pelo menos em ratos, já temos exemplos de indivíduos que ganharam e perderam peso depois de transplante das espécies moradoras de seus intestinos.
E logo descobriremos se a técnica funciona em pessoas, já que acabou de ser confirmado que no final de 2016 termos o primeiro grupo de pacientes humanos a receberem transplantes fecais com intuito de reverter a obesidade. O grupo vai consumir pílulas com cocô de pessoas magras, afim de repovoar seus intestinos com a flora microbiana das doadoras.
Tudo isso é bem recente e é cedo para se ter certeza, mas tudo indica que transplantes fecais vão se tornar mais comuns em breve.
No livro Missing Microbes, o microbiólogo Dr. Martin Blaser também relaciona as mudanças na nossa microbiota com o surgimento do que ele chama de “pragas modernas”: alergias de pele, alergias alimentares, asma, intolerância a glúten e diabetes infantil.
Diferente das pragas letais do passado, que apareceram relativamente rápido e com força. As pragas modernas são condições crônicas, que diminuem e degradam a qualidade de vida das suas vítimas, por décadas.
A pesquisa de Blaser está focada em uma espécie de bactéria chamada H. Pylori, que vive nos estômagos de algumas pessoas. Há alguns anos, foi descoberta uma relação direta entre H. Pylori e o surgimento de úlceras e gastrites crônicas. Logo passou-se a exterminar totalmente essa bactéria, como medida preventiva. Mas H. Pylori sempre existiu em nossos estômagos, e evoluiu junto conosco pelos últimos 50 mil anos.
E agora se descobriu que em populações pequenas ela não apenas é inofensiva, mas ajuda a desligar reações alérgicas.
Algumas espécies de bactérias, incluindo H. Pylori, mandam sinais diretamente para o sistema imunológico, que suprime o ataque do nosso corpo contra possíveis substâncias alergênicas. Elas fazem isso como forma de proteção da espécie, para que nosso corpo não as ataque, mas esses sinais químicos acabam também impedindo que sejamos sensíveis demais a substâncias que não são perigosas para nós, como o glúten, ou o pólen.
A presença de H. Pylori no inicio da vida, parece ajudar a garantir que, quando o hospedeiro encontrar substâncias potencialmente alergênicas, ele poderá ser capaz de desativar as respostas imunológicas antes da alergia começar.
São inúmeras interconexões e relações complexas de harmonia que estão só agora começando a ser desvendadas e quanto mais estudamos, mais percebemos que nossos habitantes são essenciais para o nosso bem-estar. Temos dentro da gente uma floresta tropical, um bioma lindo e riquíssimo, e que está com a gente há milhões de anos, evoluindo junto, se transformando, se adaptando.
Nosso microbioma é tão importante quanto um órgão, e sem ele não sobreviveríamos.
Mas nossa floresta tropical interna está defasada, temos menos espécies do que costumávamos ter. É difícil entender todos os mecanismos que contribuem para essa falta de diversidade, mas, assim como acontece com grandes biomas, quando espécies entram em extinção, toda a harmonia é abalada.
Se sabe que povos indígenas Yanomamis, moradores da floresta amazônica têm níveis extraordinários de diversidade bacteriana, com muito mais espécies diferentes do que moradores de Nova York. É provável que eles sejam representantes vivos de como a colônia que é o corpo humano, costumava ser, antes das interferências do mundo moderno. Será que seria uma boa ideia recebermos transplantes fecais dessas pessoas? Dr. Blaser acredita que essa possa ser uma solução para fortalecer e enriquecer nossos corpos. E restaurar a diversidade da nossa flora.
Cada pessoa possui ecossistema particular que, como um recife de coral ou uma floresta tropical, é uma organização complexa, composta por organismos que interagem diretamente entre si. Assim como em todos os ecossistemas, diversidade é crucial.
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A principal fonte de pesquisa para esse texto foi o livro Missing Microbes – How the Overuse of Antibiotics Is Fueling Our Modern Plagues, de Martin J. Blaser.
Ilustrações por Filipe Rossetti, mais desenhos dele aqui.