Hack, hacker, hacking. Um carinha sentado em frente ao computador, all night long, comendo Cheetos e metendo o bedelho em servidores alheios. O termo hacker, associado diretamente aos piratas futuristas, tem todo um imaginário cyberpunk por trás e uma lista de significados e aplicações.
Hack – cortar? decifrar?- ou hacker, é um termo que lá nos anos 50 começou a ser usado como uma forma de explicar uma solução criativa para um problema. Uma gambiarra. Uma faísca. Epifania? No MIT, a palavra era usada em referência a trotes e brincadeiras, muitas que estudantes armavam uns para os outros como parte desta cadeia ritualística da academia.
Praticamente, os hackers então surgem como aqueles responsáveis pelo blefe criativo, pela puxada de tapete, pela saúde do bom humor. O gosto pelo jogo, armadilha. Decifra-me ou te devoro, disse a esfinge a Édipo sem sombra de piedade.
Este foi o ano que a defesa da Apple utilizou em corte a tese de que o código criado pelo programador está enquadrado como direito de expressão – portanto protegido pela primeira emenda do país que trata sobre liberdade de expressão. O FBI foi aos tribunais para que a empresa e os responsáveis por escreverem o software do aparelho ajudassem a destravar um iPhone que pertencia aos atiradores de San Bernardino, responsáveis por um atentado em 2015 na Califórnia onde 14 pessoas foram mortas. Sob a ótica que o programador do caso tinha propriedade intelectual e criativa sobre o conteúdo, os advogados da empresa californiana afirmaram que o código é a escrita pessoal do programador. A linguagem de programação foi equiparada a qualquer outra forma de expressão subjetiva.
No ritmo de perceber a criação do programador como escrita, formadora de leis, derivada de uma gramática – é interessante a figura do tal hackear como um transgressor dessa legislação, rompendo as estruturas da linguagem, descobrindo suas fraturas.
Roland Barthes, ao falar da linguagem recorre à ideia de lei, “a linguagem é uma legislação, a língua é seu código”. Obviamente com efeitos negativos, pois como toda classificação, esta é opressiva. O idioma não obedece o que queremos dizer mas o que ele obriga a dizer – a língua é fascista. Contra esta aparelhagem totalitária temos o hacker, o fura-bolo, o quebra-quebra.
O código de computação, a língua, é como o tijolo no ciberespaço. É como o urbanista que define o tráfego, o arquiteto que constrói as cidades, as vias, os locais proibidos. Quebrar o código, é construir uma porta no meio do Pão de Açúcar digital, fazer um túnel subterrâneo embaixo de um bairro badalado. As implicações dele são reais, sua legislação fabrica um espaço – assim como – suas pequenas prisões. Casos como a da acusação que os algoritmos do Google sempre completam sobrenomes de pessoas negras no buscador com sentenças relativas a roubo ou prisão mostram que a cidade não é a mesma para todos. Por isso hackear a cidade digital é preciso. Hackear tem uma natureza política nata.
O Peixe é Punk
“Faça você mesmo de sua vida uma obra de arte, aqui e agora. A tecnologia está aí para lhe ajudar, mas desconfie das promessas da ciência e da técnica. Explore todas as possibilidades concretas e imaginárias de utilização dos objetos. Tome nas suas mãos o destino tecnológico do planeta.” André Lemos apud Nicholas Negroponte sobre o ser cyberpunk (Cibercultura, 2010)
“15/ A rede controlará o homem pequeno, e nós controlaremos a rede. 16/ Pois se você não controla, você será controlado. 17/ Informação é poder! ” O Manifesto Cyberpunk, por Christian As. Kirtchev (1997)
Os cyberpunks jogam com as regras impostas pelo sistema tecnocrático mas procuram pela subversão e prazer para questionar o poder tecnológico moderno, popularizar a ideia de computador como liberdade. Ver a tecnologia como construção existencial. Ser um piloto. Os hackers foram os responsáveis pelo nascimento da internet para todos, por demonstrar as falhas do sistema como respiros na legislação. É a queda da racionalidade tecnológica, uma forma de humanizá-la frente ao sistema e corporações.
Octavio Paz fala do poema como sempre acompanhado da vontade de criação. A força que põe a linguagem em marcha. A criação poética começa com a violência imposta sob a linguagem. O corte. O crime. A poesia foi um alimento que a burguesia tentou domesticar, digerir. A situação do poeta é uma situação marginal. É uma iniciadora. Quando absorvida pela elite, pelo sistema, é novamente arrebentada. O poeta, diz Paz, está ao lado do povo, da comunidade. Linguagem viva, sem fórmulas.
Quando um hacker invade um sistema, aponta falhas, o sistema incorpora sua ação e muda. Se corrige. A tecnologia, a chama do camarada Prometheus, a tecnologia – a potência do código ou a mão dos poderosos, precisa constantemente ser ocupada, assim como a linguagem oral e escrita, retomada pela comunidade. Precisa ser avisada da sua natureza passional, humana, por tanto não amorfa e sim recicladora.
Menos importante do que a língua segura de sua lei e sua capacidade de comunicação, o código que constrói os sistemas e ambientes, está a dúvida. O poema como Valéry arrisca, o poema como o desenvolvimento de uma exclamação. É a troca do seguro pela ruptura, pelo ininteligível. Convoca-se uma mudança, sem saber para onde correrá seus estilhaços.
O poeta, ou o hacker, está constantemente aguçado em demonstrar que o sistema não é rígido, ainda que muitas vezes o que busquem é pregar uma peça, se divertir. Eles conhecem o código ao ponto de dobrá-lo, ou se abstrair ao máximo de seu sítio, e resguardar seus olhos desmapeados. É como o paradoxo do peixe em Adília Lopes “descubro que precisei de apanhar o peixe/ para me livrar do peixe”. Apanhar o peixe é a escrita do poema, da subversão. É preciso quebrar a legislação para poder existir. Para podermos falar o que queremos e não o que a língua nos obriga.
Arte Poética, por Adília Lopes
Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer
O hacker zomba do poder porque pode. Hackear é como apanhar um peixe sem nunca ter pescado um peixe – mas é uma questão de vida ou morte. Confundir é jogar e jogar é entortar o código. Informação é poder! Tome o controle da sua vida.
Quando os hackers do grupo Anonymous usam seu conhecimento e mandam centenas de pizzas para a sede da Cientologia, isto pode parecer uma coisa besta. Mas o poder metafórico disto é estrondoso. Como diz Paz, o humor é uma das maiores armas da poesia.
O tom nonsense é o colapso final do sistema.
O poeta hackeia a linguagem, hackeia a palavra-peixe, a imagem do peixe. Coloca o peixe no centro de uma discussão sobre inspiração da escrita. Coloca pilhas de pizzas numa igreja, como forma de dizer tudo. Constrói uma brecha, uma rodovia aberta, em meio ao programado urbanismo digital.
O potencial punk dos dois se sobrepõe. Contra a distopia e controle do código, em uma imaginação abusada vejo facilmente a exclamação de Valéry como a chaminha do tal Prometheu. A tecnologia exclamada, que retorna a sua gente, humanizada. Neste caso aqui: seguidamente sequestrada, controlada, seguidamente retomada. Todo conhecimento mais toda promessa de mistério – a resistência contra a racionalidade e a lógica total do meio – para todos e para todas.
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Texto originalmente publicado aqui.