Nada de Valor está Aqui

Existe uma única estrutura construída para durar para sempre. O primeiro depósito permanente de lixo radioativo já projetado, Onkalo, na Finlândia, é um túnel que desce em espiral por 500 metros e depois se bifurca em diversos corredores, onde estão sendo estocados os resíduos nucleares produzidos no país. Em 2120, os túneis de Onkalo serão fechados com quilômetros de concreto, isolando 5500 toneladas de materiais altamente radioativos. Para, se tudo correr bem, nunca mais serem perturbados.

Já que para sempre é muito tempo, o repositório foi projetado para durar, pelo menos, o tempo mínimo que o seu conteúdo vai continuar sendo perigoso para os seres vivos: cem mil anos.

Cem mil anos é um pedaço de tempo inimaginável. Se voltássemos cem mil anos no passado encontraríamos uma pequena sociedade de Neandertais caçando mamutes com pedras afiadas. Os seres humanos ainda nem haviam chegado até a América do Sul. Nos últimos cem mil anos o planeta enfrentou uma era glacial e um vulcão que quase extinguiu a humanidade.

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Não podemos ter certeza de nada sobre daqui a cem mil anos, nada do que a gente viveu até agora pode ser projetado por tanto tempo. Ainda mais porque estamos vivendo uma explosão tecnológica totalmente sem precedentes.

Mas, levando em consideração o que já vivemos podemos imaginar que, pelo menos, daqui a cem mil anos a linguagem será diferente, os idiomas que conhecemos não vão mais existir. Talvez os seres humanos sejam fisicamente diferentes, talvez sejamos uma nova espécie. Talvez outra espécie seja dominante no planeta Terra. E sabemos que o lixo nuclear produzido na nossa época vai continuar altamente radioativo.

Estamos deixando uma herança que não tem cheiro, nem gosto, nem som, mas que mata. E vai continuar perigosa por muito, muito, tempo.

Como poderemos garantir que civilizações futuras não entrem nos depósitos geológicos e consequentemente liberem todo esse material radioativo?

Essa questão tem sido pensada pelas pessoas responsáveis por repositórios nucleares ao redor do mundo por algum tempo já. Em 92 o governo dos Estados Unidos convocou um painel formado por 13 especialistas multidisciplinares (antropólogos, linguistas, astrônomos ) para pensar numa forma efetiva de sinalizar o depósito nuclear de Wipp (Waste Isolation Pilot Plant) no Novo México. Durante três semanas os profissionais pensaram em marcadores que continuariam eficientes por “apenas” dez mil anos. Mesmo sabendo que a radioatividade do material vai durar muito mais do que isso, os responsáveis pelo projeto alegaram que pensar cem mil anos no futuro seria uma perda de tempo deles e de dinheiro público.

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Carl Sagan, que foi convidado para participar do painel (mas não pôde ir), sugeriu que fosse colocado sobre o repositório, o famoso símbolo da caveira com os ossos cruzados.

Mas até esse símbolo, que para nós tão obviamente sinaliza perigo, não vai sobreviver os dez mil anos. A caveira com ossos cruzados, quando surgiu, apenas 600 anos atrás, significava renascimento e vida eterna, antes de ser adotada por um grupo pirata. Até nos dias de hoje existem culturas, como a mexicana, que não associam caveira com perigo, por exemplo.

Nos próximos dez mil anos pode ser que a nossa cultura como um todo seja reiniciada, que as informações sejam perdidas e que os seres humanos comecem um, ou vários, ciclos de reconstrução. Em algum momento nos próximos dez mil anos, durante um desses novos ciclos de reconstrução da sociedade, seria possível que alguém encontrasse o símbolo da caveira e ossos, (ou quase qualquer outro que possamos escolher) e exatamente por isso quisesse cavar e descobrir que relíquias foram deixadas para trás, por uma cultura antiga. Os marcadores poderiam ser interpretados como chamariz de um tempo religioso, por exemplo.

Essa é uma grande preocupação das pessoas responsáveis pela concepção dos marcadores, o fato que de nós, como espécie, somos curiosos. Para que os marcadores cumpram sua função é preciso que passem uma mensagem complexa de forma clara, e precisamos que as pessoas do futuro, além de compreender a mensagem, acreditem nela.

A tumba do antigo conselheiro egípcio, Khentika, por exemplo, contêm a inscrição “Para todos os homens que adentrarem minha tumba… impuro.. existirá um julgamento … um fim deverá ser feito dele… Eu irei agarrar seu pescoço como se fosse um pássaro… Eu lançarei o medo de mim para ele.

Mas os arqueólogos que encontraram a mensagem não deixaram de escavar e adentrar a tumba, por medo do “julgamento de Khentika”.
Como impedir que a mesma coisa aconteça com o aviso que iremos colocar em cima dos depósitos de lixo nuclear? É preciso fazer uma civilização, sobre a qual não sabemos nada, acreditar que existe um material que libera energia perigosa, mas que ninguém pode ouvir ou sentir ou enxergar. E que continua perigosa por cem mil anos.

Além de conseguir passar uma mensagem complexa, precisamos escolher algum material que dure todo esse tempo, que resista a possíveis eras glaciais, que resista a inundações. Que não seja bonito, ou interessante, ou valioso, para que não seja roubado. Que não seja pequeno o suficiente para poder ser retirado do local e colocado em algum museu. E não podemos contar com linguagem escrita.

Possível marcador para lixo radioativo, concepção de Jon Lomberg.

Figuras são atemporais? Mesmo essa tirinha pode ter interpretações catastróficas se lida de baixo para cima, e não de cima para baixo. O intruso pode pensar que o depósito nuclear contém remédios milagrosos que ressuscitam as pessoas!

Uma das propostas do painel de especialistas, seria uma imensa paisagem de espinhos gigantes, que ocuparia toda a superfície do local. A ideia seria passar uma sensação de mal estar e tristeza. E para que não vire uma espécie de Stonehenge para o futuro, um ponto turístico que acabaria atraindo pessoas para o local radioativo, no centro do espaço estaria “algo” que consiga passar a seguinte mensagem:

“Mandar essa mensagem foi importante para nós. Nós nos consideramos uma cultura poderosa. Esse não é um local de honra… nenhum evento prestigioso é comemorado aqui… nada de valor está aqui. O que está aqui é perigoso e repulsivo para nós. Essa mensagem é um aviso sobre o perigo. O perigo está localizado em um lugar em particular… e aumenta em direção ao centro… o centro do perigo é aqui… ele tem um tamanho e formato específicos, está abaixo de nós. O perigo ainda está presente no seu tempo como esteve no nosso. O perigo é para o corpo, e pode matar. A forma do perigo é uma emanação de energia. O perigo é liberado somente se esse local for perturbado fisicamente. É melhor que esse local seja evitado e permaneça inabitado.” Significado sugerido para uma mensagem não-verbal que deveria sinalizar o repositório de lixo radioativo Wipp, para ser compreendida por mais de dez mil anos.

Paisagem de Espinhos, conceito do arquiteto Michael Brill para o repositório de lixo nuclear Wipp.

No documentário sobre Onkalo, Into Eternity, um dos responsáveis pelo projeto, defende que o melhor seria não sinalizar o local de forma alguma. Apenas lacrar a entrada e esperar que ninguém cave e descubra os presentes que nossa geração deixou para o futuro. Mas acreditar que possamos esconder uma estrutura com mais de 300 mil toneladas de metais pesados parece ingênuo da nossa parte.

Podemos pensar que já que depósitos geológicos profundos, como Onkalo, estarão espalhados por toda a crosta terrestre, bastaria um único acidente para que gerações futuras passassem a levar detectores de radiação para todos os lugares.

Mas e se eles nem souberem mais o que é radioatividade? Provavelmente em algum momento nos próximos séculos, a extração de energia nuclear será substituída por algo melhor. Então até o próprio significado de radioatividade pode ser esquecido com o passar dos milênios.

E por não ter nenhum traço visível, talvez leve muito tempo depois da liberação da radioatividade, e da contaminação de várias pessoas e materiais, até que se redescubra a causa dos problemas.

Arthur C. Clarke disse uma vez que a Terra vai se tornar um museu biológico da nossa história. Parece que vai ser um museu bem lúgubre, que em vez de receber bem seus visitantes, pede para que eles se afastem, mantenham distância, e tem como “relíquias” um monte de coisa que mata.

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Simplesmente erguer placas ou estruturas de aviso nos locais dos repositórios também seria uma estratégia provavelmente falha, porque os meios, a mídia onde a mensagem seria gravada, e até a forma de passar essa mensagem, se tornarão obsoletos com o passar do tempo.  Teríamos que achar uma forma de passar a mensagem, e somente ela. Sem o ruído na comunicação que seria causado pelo suporte.

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Repositório nuclear permanente de Onkalo, na Finlândia. Imagem retirada do documentário Into Eternity.

Em 1989 a revista alemã de semiótica Zeitschrift für Semiotik chamou filósofos e professores, para pensarem de forma mais livre, em maneiras de comunicar o perigo da energia nuclear para gerações de seres humanos que vivam na Terra daqui a dez mil anos.

Para o escritor de ficção científica Stanislaw Lem, a forma mais eficiente de comunicação com o futuro seria através da matemática. Ele defende que mesmo que aconteça uma catástrofe que obrigue a humanidade a se desenvolver novamente, a matemática voltaria a ser descoberta e usada da mesma forma que usamos hoje, por ser uma propriedade do nosso universo.

Diversos outros participantes da enquete sugeriram que a única maneira de manter o conhecimento inteligível por milênios seria através da sua auto-propagação de geração para geração. Quer dizer, a mensagem precisaria ser constantemente atualizada, ser mantida viva, para que seja ainda compreensível com o passar dos milênios. No melhor estilo “meme” de Dawkins, a mensagem precisaria usar as pessoas como veículo para se disseminar. E para que isso aconteça a mensagem precisa ser interessante o suficiente para que as pessoas queiram passá-la a diante. Uma das participantes da edição, a autora francesa Françoise Bastide defendeu essa ideia dizendo que “se acredita que o conhecimento é esquecido, e não é passado para a próxima geração quando seu conteúdo não desperta interesse.”  Não adianta explicar tudo sobre radioatividade para algumas pessoas e torcer para que elas expliquem tudo para seus filhos e os filhos deles, e assim por diante, por mais de três mil gerações.

Fançoise também é a autora da ideia preferida entre os participantes da edição, junto com o semiótico italiano Paolo Fabbri. A Solução do Gato Radioativo é formada por duas partes cruciais:

Primeiro seria preciso alterar geneticamente uma espécie de gato, para que mude de cor quando entrar em contato com radiação. Os gatos serviriam de marcadores vivos. Se a espécie for forte o suficiente para sobreviver alguns milênios – o que é provável, já que gatos domésticos existem há mais de 15 mil anos – o aviso será dado.

A segunda parte do plano serviria para que as pessoas consigam decodificar e compreender o aviso, e para isso Françoise e Paolo sugerem a criação de um folclore.

Folclores costumam compor memes bem fortes e duráveis (papai noel, deus, etc). Então teríamos que criar músicas, feriados, lendas, monumentos sobre os Gatos Radioativos, depois podemos esquecer de tudo o mais sobre os repositórios nucleares, a única informação que precisa sobreviver é que “se o gato mudar de cor é preciso se mudar para longe”.

Para que mesmo que não se saiba da existência de repositórios, e mesmo que o próprio conceito de radioatividade se perca com o tempo, mesmo que os países, os continentes e as formas de comunicação mudem, a ideia de que quando um Gato Radioativo muda de cor, algo ruim aconteceu, faça parte da cultura popular e permaneça.

A proposta de Paolo e Françoise nunca foi considerada seriamente, e foi concebida para ser um exercício de semiótica.

Mas mesmo que a Wipp tenha optando pelos conservadores monolitos com inscrições em sete idiomas, e que Onkalo ainda não saiba o que fazer a respeito, a ideia do Gato Radioativo é tão carismática, que pessoas pelo mundo estão, independentemente, adotando partes da proposta e tornando-as realidade.

O músico Emperor X já começou a propagar a lenda, e fez a primeira música a respeito do Gato, especialmente para o podcast 99% Invisible, que tem um episódio sobre marcadores de repositórios nucleares.

 

Claro que de nada adianta a lenda se o próprio gato não existir. Felizmente, para a segurança das nossas futuras gerações, laboratório de biohacking de Montreal Bricbio tem um plano para criar mesmo um gato que mude de cor em contato com radiação.
Primeiro eles querem modificar geneticamente um animalzinho chamado C. Elegans, e depois continuar o processo com animais mais complexos até, por fim, criarem um Gato Radioativo de verdade!

Foto retirada do site do Gato Radioativo. Ao que tudo indica ele também vai ser bioluminescente.
Foto retirada do site do Gato Radioativo. Ao que tudo indica ele também vai ser bioluminescente.

Então a ideia do Gato Radioativo está se espalhando muito mais do que seus criadores imaginaram, e sendo adotada pela cultura pop, como um verdadeiro folclore deve ser. De todas as ideias sugeridas pelos painéis, a possibilidade de passar informação através de genes e memes me parece ser  a mais eficiente, porque é assim que a própria natureza faz, e tem dado certo por muito tempo.

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