Se o senhor não ta lembrado, dá licença de eu contar: os versos da música de Adoniran Barbosa, escrita há mais de 60 anos, denunciavam um problema que se mostra longe de ser resolvido na cidade de São Paulo e no país inteiro. A luta por moradia é um direito garantido pelo artigo 6º da Constituição Federal que aponta para duas questões evidentes – os altos índices de déficit habitacional e o alto índice de imóveis abandonados.
Muito teto sem gente, muita gente sem teto.
Só no Estado de São Paulo estima-se que mais de um milhão e duzentas mil pessoas se encontrem em habitações precárias ou em situação de risco, pagando valores de aluguéis que inviabilizam outras necessidades básicas como alimentação e educação. Esses números não contabilizam as pessoas em situação de rua, que segundo a prefeitura são, só na capital, mais de 14 mil.
A construção desse apartheid social em São Paulo remete a tempos anteriores aos da música de Adoniram Barbosa. Em seu livro “São Paulo”, a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik descreve o caminho da construção da cidade de São Paulo e como ele foi traçado sempre em detrimento da população mais carente e objetivando os interesses dos grandes empresários e de uma urbanização “excludente, feita para poucos e voltada apenas para o mercado”.
A manutenção desse déficit histórico que atinge milhares de famílias é reforçada pelo crescimento urbano mal planejado, mas, principalmente, pela desregulamentação dos aluguéis e pelos altíssimos índices de imóveis abandonados ou não utilizados, muitos deles com grandes dívidas com o Poder Público, desrespeitando a Lei 10.257, conhecida como Estatuto da Cidade, que exige função social a todos imóveis ‘em prol do bem coletivo’ para “evitar […] a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização e a deterioração das áreas urbanizadas”. Apesar da criação de uma lei que regulamente a ocupação do solo, os grandes proprietários, empresários e empreiteiras, que há anos utilizam prédios, terrenos e imóveis para especular, seguem mantendo imóveis abandonados e terrenos sem função social.
Poderíamos imaginar que diante do descaso demonstrado pelos governos municipal, estadual e federal para a questão, o corpo de juízes do país pudesse viabilizar o direito à moradia garantido na Constituição e punir os proprietários que mantém imóveis de maneira irregular. Infelizmente as milhares de famílias que lutam diariamente por moradia digna no Brasil são vitimadas ainda mais por um judiciário que garante o direito à propriedade de poucos, mesmo que exercidos de maneira irregular, negando o direito de milhares de pessoas que vivem em situações precárias. As reintegrações de posse em São Paulo são um exemplo claro de como a lei e o acesso à Justiça tem dois pesos e duas medidas, apesar das históricas filas nos Fóruns da cidade, os pedidos de reintegração de posse realizados pelos proprietários são rapidamente julgados, na maioria das vezes a revelia, sem aviso prévio ás famílias que ocupam os imóveis.
Em prazo recorde e pontualidade britânica o batalhão da polícia militar mais próximo prepara uma operação de guerra, com contingentes gigantescos para expulsar essas famílias de seu maior sonho (e necessidade básica), uma casa. O que fica para trás é tradicionalmente destruído a chutes de policiais, antes do imóvel ser novamente lacrado pela prefeitura, que acaba ‘ajudando’ a manter o imóvel abandonado, enquanto deveria coagir essa prática. A justiça garante rotineiramente aos donos desses imóveis que eles sejam mantidos de forma irregular, não pagando seus impostos e desrespeitando os termos de ocupação da cidade previstos em lei, e os juízes demonstram acreditar que o direito à propriedade irregular é maior que o direito à moradia dessas milhares de pessoas.
Mas quem são esses grupos que ocupam imóveis? Normalmente chamados dos piores nomes em tentativas midiáticas de demonização realizadas por esses clones televisivos do finado Alborghetti, os moradores de ocupações denunciam privilégios e lutam por seus direitos. No ano de 2012, acompanhei um grupo de moradores de um prédio ocupado por cerca de 150 famílias, na esquina da Ipiranga com a São João, que passava por um processo repentino de reintegração de posse. O grupo se dirigia ao Fórum João Mendes, numa tentativa de convencer o juiz de a conceder um prazo maior para que pudessem encontrar um outro lugar, além da rua, para se instalarem.
Naquele dia li a carta que seria entregue ao juiz e aqui reproduzo um dos parágrafos:
“Não queremos privilégios. Queremos morar, trabalhar e sustentar nossas famílias. Somente isto. Somos trabalhadores despojados de tudo. Sofremos o abraço das dificuldades por gerações. Muitos de nossos antepassados, nós mesmos e agora nossos filhos, não puderam frequentar escola, pois tinham que trabalhar desde a infância. Difícil ir ao médico, ao oculista, ao dentista. Nunca moramos em casa com banheiro em seu interior. Nunca tivemos bons salários. Tivemos sempre dificuldade da boa alimentação. Estas condições nos colocaram em desvantagem social. Sem habilidades para competir com as pessoas que têm seus direitos assegurados. Por isso o Poder Público e todas as pessoas de bem, têm a obrigação de impedir a continuidade desse desequilíbrio. Nossos filhos sofrem terrivelmente nestas circunstâncias”. Trecho da carta entregue por um grupo de ocupantes ao juiz responsável pela reintegração de posse do prédio que antes eles tinham como casa.
Guilherme Boulos, um dos coordenadores do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), explica como a luta por moradia acaba fortalecendo a luta por outros direitos básicos como saúde, educação e infraestrutura, visto o empoderamento criado por essas pessoas ao estabeleceram relações de coletividade e luta. Boulos reforça que o aumento do preço dos aluguéis tem se tornado um impedimento para que os trabalhadores de baixa renda possam morar dignamente enquanto aguardam as inacabáveis filas dos programas sociais: “O aluguel muito caro causa uma piora geral na qualidade de vida. É isso que está impulsionando as ocupações no país todo. Ocupar é a única alternativa ao aluguel abusivo”.
As práticas de organização e a criação de pequenas comunidades dentro dos movimentos de ocupação e dos imóveis abandonados demonstram que o ‘déficit’ do Poder Público em relação à essas famílias está longe de ser apenas habitacional. Com o esforço dos próprios moradores e alguns coletivos de apoio aos movimentos, milhares de iniciativas culturais, educativas ou sociais surgem dentro dessas ocupações. Ocupações como a São João, Mauá (recentemente regularizada), Prestes Maia, Cine Marrocos, Hotel Cambridge e Pamplona mantém atividades e espaços destinados à cultura. Atualmente estão surgindo algumas ocupações que reinvidicam mais espaços culturais, como a Casa Amarela e a Ocupação do Casarão Cultural na Zona Norte de São Paulo.
Todas essas práticas e possibilidades, exploradas pelos próprios moradores, enaltecem a vontade, a necessidade e, principalmente, a capacidade de auto-organização e determinação desse povo, que mesmo esfoliado historicamente pelo interesse dos poderosos, ainda mantém fortes laços comunitários que se opõem ás atuais formas de fazer política, fazendo das ocupações pequenos quilombos cravados no coração de grandes centros econômicos.