(Este post é uma continuação. Leia a 1ª parte.)
A segunda parte é dividida em três capítulos:
5. Aquele em que todo mundo faz suas selfies.
6. Aquele em que eu tiro uma selfie.
7. Aquele em que a gente lista para quem as selfies são e para quem não são, e depois todo mundo morre.
Nem precisamos decidir se selfies são boas ou ruins para a humanidade; nós não temos como saber disso por décadas ou talvez por séculos (ou talvez nunca; talvez, com o passar das gerações, as palavras “bom” e “ruim” vão deixar de ser usadas como formas de descrever escolhas estéticas pessoais). Mas selfies são uma forma de diálogo da qual milhões de pessoas estão fazendo parte, conversando, aceitando, se apaixonando e se doando completamente, a cada minuto de cada dia. Pule para dentro do feed ou fique para trás.
Pelos últimos 6 meses eu pedi para pessoas me mandarem as suas fotos. Cada vez que abro meu e-mail, eu tenho novas selfies para observar, com novas histórias por trás dos motivos da sua existência e com novos impulsos que levaram pessoas a juntarem forças com o seu celular. Essas histórias me fizeram continuar, elas foram minhas baterias.
Aqui estão algumas. Você pode ver as outras (e adicionar a sua!) aqui.
“Essa é de quando eu fiz minhas tranças pela primeira vez. Eu tirei essa foto logo depois de acordar. Eu faço selfies quando não quero levantar da cama ainda. Quando tirei essa, me lembro de ter pensado ‘cara, eu tô tão lindx’. Eu não tinha tido cabelo comprido desde os 16 anos e estava super empolgadx. Eu assumi que era trans aos 20 anos, meu cabelo era super curto; naquela época, eu estava vivendo como homem há 2 anos, e meu cabelo estava super curto. Daí eu parei com a testosterona quase 2 anos atrás e comecei a deixar o meu cabelo crescer. Eu estava super empolgadx por fazer minhas tranças. Era uma grande afirmação de gênero para mim, e eu não conseguia parar de me olhar e brincar com elas. Eu fiz essa selfie e fiquei tipo ‘isso é tudo, eu estou arrasando’.
Eu definitivamente tiro selfies para mim mesmx, mas a principal razão para postá-las é para que eu seja um modelo de pessoa agênero de cor, e eu quero que outras pessoas trans possam ter alguém para quem olhar e se verem refletidas. Eu não tive isso enquanto crescia, e isso é superimportante para mim. Eu sinto que minha vida poderia ter sido muito diferente se eu tivesse conhecido alguma pessoa que fosse não-binária ou se eu soubesse que poderiam existir outros gêneros além de feminino e masculino. Então meu propósito com selfies é 1) parecer extremamente fofx e 2) estar bem visível e acessível.”
Rebecca
“Eu fiz essa no dia que me disseram que eu iria morrer se eu tirasse o tubo do meu nariz. Eu não conseguia manter meus olhos abertos e formar um sorriso era a coisa mais difícil que eu poderia fazer… Eu tirei essa foto porque eu estava determinada a ter uma foto de ‘antes’, porque eu estava certa de que aquele dia era o início da minha recuperação rumo a um ‘depois’.”
“Essa primeira eu tirei no banheiro de um baile de gala, onde me sentia totalmente deslocada. Na outra, eu tinha comprado esse biquíni on-line, e quando eu provei ele em casa, lembro de ter pensado ‘como eu fui capaz de odiar isso tudo?’ e quase chorei. Durante anos eu pensei que o tamanho do meu corpo e o fato de eu ser queer significava que qualquer tipo de feminilidade não estava disponível para mim. Por sorte, desde então eu percebi que a respeito de feminilidade você pode escolher a sua própria aventura, e tirar selfies como essas me relembram que eu sou escultural e magnífica pra valer.”
“Ano passado, um mês depois da minha mãe ter sido diagnosticada com Alzheimer, eu passei o mês de outubro inteiro em Los Angeles. Minha mãe estava bem nervosa a respeito da minha ida porque ela pensou (com razão) que eu iria me apaixonar pela cidade e que não iria querer voltar para a Costa Leste. Para diminuir o medo e a tensão, eu mandava selfies para ela, para ajudar a apagar as milhas de distância e para mostrar que eu estava feliz e que não tinha, tipo, feito nada com a minha aparência que ela não soubesse. Então eu tirei essa no banheiro do meu escritório e mandei com a legenda ‘pegando uma cor, mas com muita saudade’. Depois coloquei um filtro e postei no meu Instagram, e essa foi a minha primeira selfie.”
“Essa selfie é uma das minhas top 10 porque eu estou feliz, a iluminação está perfeita, eu estou radiante, e também é o primeiro dia do retorno do Pumpking Spice Latte. Eu não sei se isso soa vaidoso, mas eu amo selfies. Eu amo fotografá-las e amo ser parte das selfies dos outros. Numa cultura tão centrada na acessibilidade da tecnologia e especialmente nos nossos telefones celulares, é uma sensação estimulante ver tanta gente abraçando isso tudo, e é por isso que eu amo retwittar essas pessoas lindas. Eu estou apaixonada por todas as mulheres que encontro on-line e adoro botar elas para cima. Eu nunca vou entender pessoas que não gostam de selfies. Mas entendo que precise de muita coragem, boa iluminação, energia e um braço forte para tirar a foto certa. E você precisa conhecer os seus melhores ângulos, o que pode ser intimidador para essas mesmas pessoas.”
“No fim de 2010, dois anos depois de deixar minha vida antiga e mudar dos subúrbios de Indianópolis para Menphis, Tennessee, para viver junto e depois me casar com a moça de um lance a distância, eu passei por um colapso depressivo severo. Era como se eu não conseguisse terminar nada, não importa o quanto eu tentasse. Até aquele momento eu tinha me deleitado com a energia que escrever e a música me davam, mas eu não conseguia mais fazer isso.
Mas — talvez por instinto, talvez por desespero — eu continuei tirando selfies com meu iPhone. Selfies da depressão definitivamente não estavam na moda naquela época, mas parece que era isso que eu estava fazendo — documentando a mim mesmo para lembrar que eu ainda estava aqui. Um dia, no fim de 2010 eu entrei no banheiro, me olhei no espelho e decidi que eu estava ótimo, sorri o máximo que consegui e tirei uma foto. A foto acima é o resultado. Eu não sei por que eu pensei que isso era um sorriso, por que eu pensei que essa camiseta branca manchada de suor seria um bom figurino, por que eu não percebi que os meus olhos estavam inchados por estar constantemente quase chorando ou que o meu olhar estava quase completamente vazio. Além disso, o meu corte de cabelo era idiota, mas os meus cortes de cabelo sempre foram idiotas até recentemente. Mas sei por que pensei que eu estava ótimo: eu não estava dormindo nem encolhido no chuveiro tentando me convencer de parar de querer morrer. Essa selfie feia é, ao mesmo tempo, uma declaração de vitória na batalha daquele dia e um grito de guerra para os meses que estavam por vir. Eu podia ficar de pé, pelo menos. Quando meu cérebro gritava para que eu me matasse, eu podia escolher não fazer nada.
Eu perdi um emprego para aquela depressão. Meu casamento entrou numa dinâmica abusiva. (Que é totalmente um tipo de discussão ovo/galinha. Eu não lembro o que veio antes. Eu suspeito que a depressão tenha vindo, principalmente porque eu estava numa posição muito vulnerável para ser manipulado — eu queria morrer a todo segundo; porque também não acreditaria que eu era impossível de ser amado, indigno de comer e merecia apanhar.)
Ano Novo, 2011, minha esposa insistiu que queria trazer um amigo mas não permitiu que eu convidasse alguém. Era o cara na casa de quem ela estava passando várias noites por semana. À meia-noite, ela já tinha adormecido no ombro dele depois de colocar um travesseiro entre nós. Eu não sei como eu tive a energia de documentar isso com uma selfie.
Quando mostrei essa foto para o meu terapeuta, ele insistiu que eu me mudasse, com razão. E foi o que eu fiz, mas não antes de ele me mandar, mais ou menos uma semana depois. Foi como mágica. A diferença foi quase instantânea. Essa é de maio de 2012:
Não foi uma mudança súbita e completa, mas aconteceu muito depressa (e, na verdade, eu só notei tudo isso enquanto separava essas selfies). A luz voltou aos meus olhos, eu reaprendi a sorrir (mesmo que só um pouquinho).”
“#SELFIEARMY é sobre amor-próprio radical. Eu realmente acredito que uma mulher amar a si mesma seja um ato de desobediência social. Nós somos ensinadas a criticar a nós mesmas constantemente, determinadas a odiarmos umas às outras. Nós fomos ensinadas que qualquer coisa que não for perfeita não é boa o suficiente, e somos muito bem lembradas de que nós nunca seremos perfeitas. Nós sempre poderíamos ser mais magras, mais bonitas, ter peitos maiores, uma bunda melhor, a pele mais clara — e graças à epidemia de Photoshop dos dias de hoje, quando vemos uma mulher na mídia, nós nos comparamos com padrões literalmente (literalmente) inatingíveis. Acima de tudo, nós não somos ensinadas a definirmos a nós mesmas, e, sim, a nos vermos através dos olhos dos homens ao nosso redor. Se recebemos um elogio, nós podemos agradecer, mas nunca devemos nos elogiar primeiro. Mais do que uma virtude, a modéstia foi inventada para silenciar mulheres. Historicamente os homens têm sido os artistas e as mulheres têm sido as musas. Tirar selfies é sobre reivindicar o direito de ser os dois — sim, eu concordo que sou linda, magnífica, uma obra de arte única. Apenas não entendo por que você acha que mereça qualquer crédito por isso —. A selfie — uma história de amor: EU SOU ARTE, EU SOU ARTISTA. VOCÊ fez o MEU corpo de refém durante séculos e estou devolvendo ele para a sua dona por direito.”
Para mim, selfies são como um diário numa linha do tempo, uma forma de documentar minhas aventuras. Às vezes eu sinto um desejo imenso de fazer uma imagem. Tipo quando minha situação é muito linda ou curiosa, eu sinto tipo uma comichão que eu preciso coçar. Eu preciso registrar o momento. Eu era defensora das selfies desde o início, cresci com uma câmera e tinha perfis no LiveJournal e no Myspace quando adolescente. Fotografar a mim mesma sempre foi uma parte regular da minha arte.
Depois do pior término de relacionamento da minha vida, eu iria tirar uma foto de mim mesma por dia, durante MUITO TEMPO só pra me lembrar que eu era real. Eu tenho um notebook antigo com provavelmente mil fotos de mim mesma aos 23, 24 anos. De um jeito estranho, eu aprecio essa prática de selfie que eu adotei, porque agora, fazendo parte de uma banda, pessoas tiram fotos de mim a toda hora, e eu conheço os meus melhores ângulos. Quando chega a hora de fazer um ensaio fotográfico, eu não entro em pânico. Eu ganhei bastante peso no último ano, e eu estou ficando velha… Mas essa é a minha cara, e é a única que eu tenho. Portanto: selfies. Essa sou eu, não importa o que eu ou você achemos disso. Eu existo.
Minha vida mudou imensamente entre novembro de 2013, quando minha banda começou a turnê pela primeira vez, até agora, e olho para o início do meu Instagram e fico chocada. Minha vida deu três ou quatro giros de 180 graus, e eu estou aqui, ainda subindo no palco e sorrindo. Tipo ‘uau, cara, aí está você’.
Sendo tão aberta quanto eu sou sobre o meu histórico de doenças mentais, talvez ver uma foto de mim, não apenas viva, mas prosperando, pode ser importante para alguém.
Selfies me dão a capacidade de mostrar que existe mais sobre mim do que as partes incendiárias focadas pela mídia. As pessoas definitivamente querem ver aquela pessoa raivosa e violenta o tempo todo. Só fotos de mim berrando. Mas eu dando um donut para um menino comer ou eu segurando um buquê de flores ou eu fazendo um bolo são fotos importantes. Eu sou uma pessoa muito legal e gentil. Eu não quero que as pessoas tenham medo de mim. Eu sou uma velhinha chata.”
“Eu tirei essa porque eu queria capturar esse momento logo depois de começar um novo protocolo de tratamento para estagio avançado de Doença de Lyme. Eu estava me sentindo melhor do que me senti em anos, e parecia ser capaz de congelar essa experiência na esperança de prolongá-la magicamente, ou pelo menos comemorá-la.”
“Eu tiro selfies hoje porque odiei a minha aparência durante tanto tempo que evitei fotos em geral por vários anos durante o começo da minha vida adulta. E lamento que não exista evidência de mim durante aquele período. Então talvez eu esteja supercompensando agora por tirar tantas selfies. A maioria das selfies que eu tiro incluem o meu gato ou a minha bunda, mas nunca os dois juntos. No caso dessa selfie, eu gosto do fato que a minha seminudez parece totalmente inconsequente para mim. O azul ciano é um bom toque, mas acho que essa seria uma foto sexy mesmo se eu estivesse vestida, porque a minha expressão facial é tão fundamentalmente eu.”
“Eu não tenho uma tonelada de selfies no meu celular porque demoro muuuuuito para preparar elas. Geralmente demoro o suficiente para começar a pensar ‘qual é o sentido de tudo isso?’ e desistir. Eu me preocupo um pouco demais com a mise-en-scène, o meu escritório é um pouco chato e eu fico com vergonha de tirar fotos em público. Eu acho que as selfies são maravilhosas e eu sempre quero ver a cara linda das minhas amigas, mas quando se trata de mim mesma é diferente.
Tipo, mesmo escrever isso. Sempre que alguém posta coisas do tipo ‘eu quero ouvir você, e sim, eu estou falando com você mesmo’ eu sempre penso ‘tá certo, mas não. Tipo não EU.’ Todas aquelas coisas empoderadoras no Tumblr e no Twitter tipo ‘você está fofa hoje’ ou ‘me mande o seu endereço para que eu possa te enviar cartões de Natal’. Eu sempre penso ‘ah, isso é gentil, mas eles não estão falando de mim’. Mas eu tenho trabalhado nisso.
Também estou me familiarizando com o meu próprio rosto. Tipo, de verdade, eu não faço ideia de como seja a minha aparência. A foto que eu tirei é parecida com o que eu vejo no espelho, mas tem fotos minhas numa festa do fim de semana passado que me fizeram ter vontade de ficar dentro de casa com um cobertor em cima da cabeça. Eu estive caminhando por aí sendo tão feia todo esse tempo? (Realmente mostrando tudo aqui.) Então, parte do motivo para eu gostar das novas selfies que eu tenho feito, é que eu tenho o controle da narrativa.”
“Primeiramente, é difícil se concentrar em chorar e segurar um celular ao mesmo tempo. Então tem um certo grau de maestria sendo mostrado aí.
Eu tirei essa foto logo depois de uma briga de fim de amizade, por causa da minha transição. Alguém em quem eu realmente confiava virou as costas para mim. Você pode ver na minha cara que não é uma simples tristeza — é uma indignação fodida. Como alguém pôde fazer isso comigo?
Existem tantas fotos por aí de mim com essa pessoa, como amigos de infância. Essa selfie foi o fim de tudo aquilo, tipo o frame final de um daqueles filmes terríveis sobre o início da vida adulta. Só que com um final ainda pior.
Você precisa documentar a si mesmo no seu momento mais vulnerável, porque apenas a memória já não é o suficiente. Sem a foto, você não se lembra como os seus lábios doíam quando você fez aquela cara ou das linhas deixadas pelas lágrimas. Tudo o que você consegue se lembrar é de que você estava triste, e isso não é o bastante para mim.”
“Cerca de duas semanas antes de tirar essa foto, eu estava deitada nua na cama e disse para mim mesma ‘estou cansada de pensar no meu corpo como um problema’. Toda vez que me olhava no espelho, eu tinha algo horrível para dizer (ou pensar) sobre o meu corpo, e então, totalmente de repente, o pensamento de passar por toda aquela velha rotina emocional me pareceu clara e profundamente entediante. Uma semana depois, eu achei essa blusa cropped numa promoção e a vesti com orgulho durante uma conversa com mulheres brancas e magras que trabalham na indústria da moda. No caminho de volta, depois do encontro, eu parei na frente desse espelho ao lado do elevador e posei, como se eu fosse tão fabulosa e não entediante quanto eu me sentia.”
“Geralmente as pessoas tiram selfies dos seus eus mais atraentes e seguros, mas eu, curiosamente, só me sinto motivada a fazer uma selfie depois que algo particularmente esquisito ou memorável tenha acontecido (e isso parece não coincidir comigo me achando fofa, infelizmente).
Essa foi tirada no JFK, logo depois dos seguranças do aeroporto amassaram o meu cabelo e os meus peitos em público, porque meu cabelo ‘étnico’ (um termo usado por eles mesmos) obstruiu o escâner do aeroporto pela nona vez em quatro semanas. Aparentemente, cabelo grosso bloqueia o escâner e esconde qualquer área coberta por ele. Se você fizer um coque, eles vão amassar o coque e, às vezes, até desfazê-lo caso você tenha escondido uma faca ou até uma arminha dentro das suas madeixas.”
“Eu tirei 25 fotos de mim mesmo deitado em diferentes posições na minha cama. Algumas engraçadas, algumas borradas, e duas ou três que eu gostei. Tirar todas essas fotos me fez baixar a guarda. Para fazer isso, eu imaginei que meu celular fosse a cara de um amigo que eu admiro.
Eu me sinto estranho às vezes, porque selfies são sobre pessoas decretando a condição sobre como elas são vistas. E, francamente, homens que se parecem comigo são vistos de forma bem positiva pela sociedade. Quando mulheres, pessoas trans, não binárias e negras postam selfies, é uma celebração, um ato político: elas retomarem o controle dos seus corpos e de como são representadas. É um movimento radical, porque reescreve a narrativa ao redor das suas vidas, uma foto por vez. Eu gosto de selfies porque eles me dão controle sobre o meu corpo.”
“Tirar uma selfie é o ato de refletir a luz que eu já senti em mim repetidas vezes. É uma tentativa de lembrar a mim mesma que eu existo. Eu acho que toda vez que eu olho para uma câmera, estou encarando minha própria mortalidade e, então, exigindo uma chance de viver para sempre — mas como uma selfie, é só dessa forma que eu quero ser lembrada. É como escrever o meu nome em alguma parede quando criança: EU ESTIVE AQUI. É isso, essa promessa íntima para mim mesma: eu não preciso ser esquecida. Isso vai existir para sempre.”
Agora deixe eu tirar uma selfie. Aqui está uma breve história sobre uma das minhas fotos, sobre o que me impulsiona a fazer elas. Minha maneira de fazer selfies pode não ser a sua; isso não é obrigatório. É só uma foto, uma de muitas.
Essa selfie em particular está localizada em algum lugar nas horas entre a noite e a manhã. Eu estou acordada até tarde de novo, lendo sobre Frida Kahlo, lendo o seu diário. Tem essa parte nele que me faz reler e ficar boquiaberta enquanto mastigo as minhas cutículas. É apenas metade de uma frase, um rabisco fora de contexto:
Aquela que nasce de si mesma.
Eu viro a página e tento distrair as minhas mãos, mas elas continuam rastejando até o meu celular, para onde elas sempre querem ir. As minhas mãos e o meu celular estão apaixonados. Eles terminam as frases de 140 caracteres um do outro. Oi, velho amigo. O instinto chama: eu clico na câmera e olho para ela. Minha cara da madrugada: brilhosa, inchada e um pouco debilitada. Mas ainda assim tem algo a respeito da luz que vêm do abajur. Eu pareço sábia. Eu pareço alguém que ficou acordada madrugada adentro, lendo. Eu me sinto motivada a capturar esse alguém para que os outros a conheçam, para eu me lembrar desse eu pela manhã. Eu penso naquelas palavras de novo enquanto tento outros ângulos. Pescoço para cima, pescoço para baixo, olhos abertos, olhos fechados. Aquela que nasce de si mesma. Acompanhada por Julia, Clover e Francesca, Frida é alguém sobre quem estou sempre pensando.
Acadêmicos gostam de conectar esse fragmento do diário ao amor de Kahlo pelos grandes mitos, à sua afinidade por histórias épicas cravadas em pedras. Kahlo estudou o Egito antigo na sua casa azul, em Coyoacan, e lá ela deve ter encontrado Nu, o primordial, sem gênero, abismo aquático no início de todas as coisas, e Atum, o primeiro deus, aquele que criou a si mesmo por ascender de si mesmo. Atum era conhecido como o começo do mundo e também o final lógico dele; o seu nome pode ser traduzido, grosso modo, como completude, o círculo perfeito. Ele pariu a si mesmo, e depois, por se sentir só, espirrou 2 crianças para fora de si (algumas versões traduzem esse espirro produtivo como ejaculação; pornô hieroglífico acaba sendo bastante vago); e depois de um tempo as suas lágrimas criaram os homens. Atum se libertou da escuridão e depois retornou para lá, uma vez que o seu trabalho estava cumprido, no seu corpo ele continha toda a preexistência e a pós-existência, toda a energia e matéria do universo.
Kahlo era uma artista com um corpo comprometido depois de um terrível acidente de bonde, uma mulher que estava constantemente confinada à sua cama e que não podia ter filhos. Eu consigo imaginar que a história de Atum e os seus poderes regenerativos era simultaneamente calmante e dolorosa para ela. Ela não podia parir nenhuma vida, muito menos o mundo, mas ela podia, pelo menos, surgir da névoa sozinha; lançando a sua imagem de novo e de novo para fora do abismo antes de retornar para lá. Eu vejo os seus autorretratos como partos extasiados: férteis, sangrentos, perigosos. Eu fico soterrada por eles.
Fecho o livro e me ponho a ajustar meu próprio rosto. Precisa de mais saturação e de ofuscar um pouco minhas linhas de expressão. Eu passo por um filtro depois do outro até que um deles simplesmente parece bom, é o mais próximo que vou chegar de ter um instinto estético às 3 da manhã. E então ela se foi. Para o Instagram, ganhar a sua 1ª estrela de ouro. Eu fatiei um pedaço de mim que também não é um pedaço de mim, e a imagem já não me pertence. Existe perda nesse momento de separação: você deseja boa sorte à sua foto, você espera que ela cresça para ser uma vencedora. Você tem esperanças e expectativas sobre o que ela fará muito depois que você já tiver retornado para o lago primordial de Nu, talvez ela cante uma música sobre você. Adeus pequena selfie da madrugada. Espero que você viva mais do que eu, espero que você seja uma lembrança de que eu já fui uma pessoa que viveu.
As pessoas me perguntam se eu já me senti culpada por usar maquiagem e suavizar minhas imperfeições, como se eu sentisse que de alguma forma eu estivesse traindo a verdade por jogar uma ideia mascarada de mim mesma para o futuro. Essa é uma das principais críticas apontadas contra as selfies: que elas enganam. Que nós nunca conseguimos nos ver claramente. Mas qualquer construção de si mesmo já é uma narrativa, é improvisação. Filtros nem sempre escondem os fatos; eles podem funcionar como contadores de história, uma luz dramática para o seu teatro pessoal. Olhe para mim chorando com essas cores lavadas e esse brilho azul; te forçando a escutar o monólogo dos meus #sentimentos. Olhe para mim sorrindo suavemente sozinha no meu quarto banhada pela luz, pálida como o vapor, beata como a pietá; testemunhe essa alegria, essa quietude, essa interrupção onírica em meio a momentos de ansiedade. Eu sou a diretora desse feed; e eu vou me comportar como se eu fosse o maldito Orson Welles.
Nesse momento existem cerca de 15 aplicativos no mercado dedicados principalmente ao ato de fazer selfies. Tem o FaceTune, o Bestie, o Perfect 365, o CamMe, o YouCam, o Selfie Studio, o CreamCam, o Candy Camera, o Cymera, o Selfie Booth, o Selfirus, o Frontback, o Dayfie e o Everyday. Em março de 2014, a Apple Store incluiu a seção “selfie” (para o desgosto dos blogueiros tech; que zombaram da página principal da loja dizendo que “não é a seção que nós queríamos, mas a seção que nós merecemos”). Todos os apps funcionam de maneiras levemente diferentes, mas todos eles otimizam ou o processo de tirar uma selfie ou os ajustes de pós-produção que acontecem antes de se clicar em enviar. O CamMe é feito para facilitar a captura da foto, permitindo que a pessoa que segura o smartphone tire a foto com um gesto da mão (o fechar do punho). Essa liberdade do hardware significa que o fotógrafo pode se esticar, caminhar para longe, posar de corpo inteiro, tirar foto da bunda, de trás. Ele libera as suas mãos e, ao fazer isso, permite que você se mexa por aí como um modelo-vivo, te permite imitar e dialogar com os autorretratos icônicos da história da arte (eu me recuso a adentrar no constante debate dos críticos de arte sobre se Rambrandt estaria se revirando no túmulo diante de tudo isso).
Aplicativos de edição como o Facetune existem para otimizar tudo que vem depois de tirar a foto; o trabalho sério de preparar uma imagem para uma exposição numa galeria. O FaceTune conta com um poderoso arsenal de ferramentas de edição: você pode tirar manchas, branquear dentes e adicionar um efeito orvalhado como uma fina camada de vaselina nas lentes, deixar os seus olhos mais brilhantes, arredondar bochechas. É nesse ponto que as selfies começam e ficar controversas: se em 2015 todo mundo concorda que é um feminismo duvidoso (no mínimo) photoshopar celebridades até que não possamos mais reconhecê-las nas capas das revistas, então por que estamos confortáveis em apagar o que percebemos como nossas próprias imperfeições? Se selfies são sobre aceitação própria, por completo, que mensagem é passada quando nós não mostramos as nossas “imperfeições”? Eu entendo esses medos, mas também defenderia que usar um Photoshop pessoal não representa o mesmo ataque à autoestima em grande escala que as capas lustrosas de revista; e tiradores de selfie são donos de toda a máquina publicitária: você tira a foto, você edita a foto, você publica a foto. Todos os artifícios estão nas suas mãos, e isso pode ser sentido como poder. O FaceTune e os outros aplicativos são maneiras de brincar, de gamificar a própria cara. Eles permitem que você puxe e sombreie, pinte e deixe tudo brilhoso. Eles te permitem escolher os seus traços preferidos e realçá-los. Eles te deixam ser o diretor de arte do próprio retrato, direcionando os olhares para locais precisos do seu rosto. Algumas pessoas veem aplicativos de edição como uma forma de se esconder atrás de uma varinha mágica, mas eu os vejo como declarações públicas de um desejo comum e humano: o de ser visto exatamente do jeito que você quer ser visto. Chore em sépia se você quiser.
O aplicativo que eu uso se chama Bestie, ele combina os 2 tipos de apps de uma única vez. Primeiro, ele abre já conectado à câmera frontal e aplica um filtro de verniz suavizador em tempo real. Os círculos sob os olhos desaparecem magicamente, a pele fica luminosa. Depois que eu baixei o Bestie, me dei conta de que existe um mundo onde eu nunca mais vou precisar manter uma versão não editada de mim mesma no meu celular; não existem negativos feios para proteger da nuvem, nada para vazar, nada pelo que me sentir mal depois. E eu sei, instintivamente, que eu não quero isso. Às vezes, quando eu sei que eu estou no meu pior, eu tiro selfies fora do app. Esse ato estranhamente faz sentido para mim; em certos dias temperamentais também me soa como um comportamento de risco. Eu posto essas imagens cruas algumas vezes por ano para lembrar a mim mesma (e aos meus seguidores) que mesmo com rugas, sobrancelha desgrenhada e poros visíveis, eu sou uma pessoa que deve ser vista, estimada e aceita com essas falhas. Mas ainda assim eu amo os aplicativos; eu acredito neles. Cindy Sherman precisou vestir centenas de trajes diferentes para interrogar todos os cantos de si mesma; aplicativos nos permitem experimentar a sua vida de máscaras com apenas alguns cliques. Eu não tenho vergonha de usá-los, e acho que ninguém deveria. Os aplicativos transformam o seu iPhone no espelho mágico da rainha. Olhe para ele e pense “não existe ninguém mais linda do que eu, e vou comer o seu coração”.
Eu tenho uma amiga que controla a sua imagem on-line com um punho de ferro; ela odeia encontrar imagens dela mesma tiradas sem consentimento. Ela frequentemente passeia pelo Instagram e Facebook desmarcando qualquer imagem, como um assaltante limpando o rastro das suas digitais. Eu costumava pensar que isso era uma excentricidade bizarra, mas depois de viver no mundo das selfies por um tempo, eu a entendo. Fotografias que você não pode controlar podem ter alguma vantagem jornalística um dia, mas elas também podem parecer exploradoras, difíceis de digerir e estranhas. Selfies fornecem a abençoada correção desse caminho de caos fotográfico, a chance de editar a narrativa que os outros podem querer contar sobre você (ou não contar — selfies também permitem que você tenha fotos disponíveis on-line, mesmo que você seja alguém que raramente aparece em fotos de festa ou em grupo).
Quando eu conheci meu parceiro, ele me contou que me conheceu por meio das minhas selfies. Isso foi bom. Porque, se você me procurar no Google, vai ver: uma foto com expressão feral, num post de um antigo blog de fofoca onde estou usando uma camisa xadrez velha e pareço estar com tiroide; uma foto de quando eu tinha 24 anos, num quintal, vestindo uma echarpe pastel horrível, e escrevendo num bloco quando todo mundo ao meu redor parece conversar uns com os outros; e algumas fotos minhas em eventos literários, cercada de conhecidos, com meu cabelo preso em rabo-de-cavalo. Se você supor coisas sobre mim por causa dessas fotos, algumas estarão certas: eu sou mesmo uma escritora que vive no Brooklyn e já usei camisas de lenhador e echarpes para provar; eu já fui a festas; eu já li em público; eu achei, em algum momento, que era uma boa ideia usar uma gravata borboleta com um vestido. Mas eu não me reconheço em nenhuma dessas fotos, e não só porque algumas delas não me favorecem. É porque eu só consigo ver aquela pessoa como um outro, como alguém com quem eu posso ter cruzado algumas vezes, mas que ainda levo vários segundos para lembrar.
Ainda quando criança, eu já sentia uma grande discrepância entre a pessoa que eu via no espelho e a pessoa que aparecia em fotografias. Mas minhas selfies contam outra história, uma história na qual a pessoa que eu vejo e a pessoa que eu sinto se fundem num mesmo instante, que parece mais próxima de quem eu sou, que sempre acende uma faísca de reconhecimento quando eu a revisito (e como qualquer pessoa que tira muitas selfies vai confirmar, voltar para olhar para fotos antigas pode ser tão tenro e empolgante quanto achar um antigo diário).
Voltando um pouco no passado do meu Instagram. Lá estou eu em preto e branco, usando óculos de sol gigantes, tomando um smoothie, parecendo um frame do novo filme da nouvelle vague num dia quente de verão. Lá estou eu dirigindo um carro vintage em Los Angeles com meus olhos focados no retrovisor (o mais perto que posso chegar de fazer cosplay da Didion com o seu Stingray). Lá estou eu, meu cabelo como uma aura ao redor da minha cara, sem maquiagem, segunrando um café do tamanho de uma criança pequena, com a legenda “eu acordei assim”. Lá estou eu depois de passar uma longa noite escrevendo, minha cara drenada, mas em paz com o que eu produzi. Lá estou eu, batom vermelho e cílios falsos; menos eu mesma, mais uma mulher bêbada num cabaré Weimar. Lá estou eu, manchada de suor e com o cabelo num rabicho, depois da academia. Lá estou eu, lágrimas escorrendo pelo meu rosto, depois de me fotografar chorando (DE NOVO) ao assistir Nada É para Sempre. Lá estou eu, atônita de raiva, depois de receber notícias ruins, e a única coisa que eu podia pensar em fazer era capturar isso. Lá estou eu com um figurino que contorna bem a minha cintura e revela todas as dimensões do meu corpo, dimensões que eu costumava odiar e agora acho impressionantes e humanas, dimensões que me fazem sentir mais forte, até um pouco parecida com o incrível Hulk toda a vez que eu as compartilho. Lá estou eu, um livro nas mãos, olhando sobre os seus cantos para a câmera Lá estou eu, parecendo séria, ou despreocupada, ou intensa, ou comportada, ou corajosa — eu já me mostrei de mil formas diferentes. Alguém que escolhe me encontrar pela 1ª vez por meio do meu feed, como o meu parceiro fez, está fazendo uma escolha compassiva. Porque é lá que você pode encontrar o meu eu prismático, minhas multitudes.
Assim como todo mundo, eu sou a dona do copyright da minha cara. Eu sou aquela que nasce de si mesma.
Eu sei as mensagens que quero passar com cada foto que posto. Elas estão todas direcionadas a um grande alvo, aquele que um dia pode transmitir uma verdade maior sobre mim do que qualquer imagem única poderia. Se nós contamos histórias para nós mesmos para conseguirmos viver, às vezes essas histórias vem em forma de fotos das nossas próprias caras, miraculosas, bobas e expressas em tantos ângulos, cores e sombras quanto a tecnologia permitir.
Nós estamos escrevendo a história de como queremos ser vistos.
Por isso selfies são ferramentas de ensino. Quando fiquei sabendo que minha mãe visitava meu Instagram, minha primeira reação foi medo, seguida de gratidão. Eu acredito que selfies (primeiro as minhas, e agora também as que ela faz e me manda por SMS ou Facebook) têm nos ajudado conhecermos melhor uma à outra, uma filha adulta e a sua mãe adulta aprendendo como cada uma de nós vê a si mesma. Selfies podem informar as pessoas que te amam e te conhecem como realmente olhar para você.
Eu me pergunto se pais que acham que os seus filhos e filhas tiram muitas selfies fariam um melhor trabalho se perguntassem sobre essas imagens, em vez de tentar acabar com elas totalmente. Conversas extremamente instrutivas podem surgir ao se perguntar para alguém porque ele ou ela postou aquela determinada selfie, naquele dia específico. Spoiler: quase sempre tem a ver com “eu só achei que eu estava gata”. Perguntar para alguém que faz parte da sua vida por que e como essa pessoa fez o seu próprio retrato pode ser um passo vital em direção a uma compreensão mais profunda. Selfies estão implorando por essa pergunta, e cada foto postada é um convite.
Assim como cada um de vocês é um numa multidão, eu também era uma na multidão. Eu vejo centenas de rostos todos os dias e me sinto revigorada. Eu me sinto revigorada por ver outras pessoas olhando para aqueles mesmos rostos, e assim por diante. Esse olhar de 2ª ordem, esse rio comum e crescente é o que nós temos que lutar para proteger, cuidando para não envergonhar aqueles que fazem selfies. Se você tem medo de se aventurar nesse rio, se você sente que não tem nada para ser visto aí, então, pode ser que selfies não sejam para você.
E só para que fique registrado, para deixar tudo claro, aqui estão outras pessoas para quem selfies não são:
* Homens que querem policiar o que mulheres podem fazer com os seus corpos, (enquanto eles são autorizados a amar a si mesmos), tudo sob o véu do “estar preocupado”. Com o quê, exatamente? Exploração? Roubo de identidade? O olhar de outros homens? Isso não é necessário! Preocupação é um pouco mais do que uma fachada para policiar o comportamento das mulheres. Preocupação é opressiva e desonesta.
* Mulheres que se dizem feministas e então usam o seu feminismo como uma arma contra selfies, escrevendo posts nos seus blogs sobre como “biquinhos” enfraquecem os esforços por igualdade. As mulheres que escrevem esses posts estão tentando se separar do tipo de mulher que beijaria uma câmera e não percebem que o binarismo que elas impõem — as boas feministas e as más feministas — é aquele que tem sido passado a elas pelos poderosos para manter mulheres umas contra as outras por tempo suficiente para que elas esqueçam de superar o patriarcado.
* Membros da mídia que veem uma enorme rede de pessoas que não precisa deles (porque comunidades de selfies estão fazendo a complexa organização de indústrias da beleza, revistas e Hollywood, parecerem frágeis e excludentes) como uma ameaça. Note também: membros da imprensa que têm medo de cidadãos que não precisam das câmeras da mídia para serem vistos, dos seus microfones para serem ouvidos nem das suas publicações para ter voz.
* Qualquer pessoa que diz “todas as vidas importam” [NT: “all lives matter” é um contraprotesto em resposta à campanha “black lives matter”] mas que não percebe que certos rostos, que estão há muito tempo ausentes da história visual dominante, agora precisam ser celebrados, e a autorreprodução em massa desses rostos é totalmente vital para que eles sobrevivam, que selfies podem se tornar escudos protetores contra violência e ódio.
* Aqueles que temem a juventude no lugar de tentar entendê-la, e esquecem que eles mesmos já foram jovens, inseguros e solitários, e que talvez tenham crescido para se tornar adultos inseguros e solitários, se ofendendo com a comunidade cada vez mais forte que as selfies têm construindo.
* Aqueles que censuram selfies, que denunciam nudes de mulheres no Instagram (para saber mais sobre isso, leia a curiosa história de Petra Collins sobre ter uma selfie removida sem o seu consentimento), aqueles cuja maneira puritana de ver não permite que corpos invadam os seus mundos a não ser que eles possam estar no controle, os que veem corpos nus como anarquia.
* Aqueles que cultivam o medo arrepiante da distopia na qual os robôs, depois de tomarem conta de tudo, nos reconhecerão pelas nossas selfies. Essas preocupações sci-fi atualmente não superam os benefícios de viver uma vida destemida, de se sentir poderoso ao olhar para as lentes de uma câmera e clicar enviar. Os perigos de se continuar invisível são muito piores do que aqueles que podem vir a surgir para as pessoas que arriscarem, que forem corajosas agora.
* Aqueles que nunca compartilharam uma selfie mas insistem que “não é para eles” e que eles não entendem por que alguém faria isso. Essas pessoas estão se afastando deliberadamente da possibilidade de descobrir um espaço no qual as identidades podem ser diferentes daquelas dos opressores. Elas estão fazendo uma escolha. Não é um crime não querer fazer selfies; existem muitas maneiras de viver e de ser feliz. Eu repito: você não precisa fazer parte! Mas é prejudicial falar sobre selfies com a linguagem do estigma. Isso só reforça o sentimento de desonra ao redor do ato de tirar selfies, desencorajando os outros a participarem da prática e da comunidade que pode muito bem salvar vidas.
* * *
Mas existem milhões de pessoas para quem as selfies são indicadas. Existem milhões que as usam, adoram e são leais a elas — são essas pessoas com quem eu falei, troquei e-mails, acompanhei e virei fã enquanto passeava pelos meus feeds, as pessoas que eu observei serem observadas. Essas são as pessoas que encontram conforto e força nas suas selfies e que dão o máximo às comunidades em troca.
Esses são os corpos que você destrói quando você tem medo deles, essas são as vidas em risco.
* O menino geek no início da adolescência que sofre bullying durante a aula mas que finalmente achou o seu povo on-line, que faz gestos de paz para a sua câmera enquanto volta para casa de ônibus.
* A garota que acabou de ter o seu coração partido, que foi deixada, que pode abanar o seu dedo do meio para a câmera com raiva e encontra 100 pessoas que rapidamente se colocarão ao seu lado. Cada toque duplo cura o seu coração e tonifica o músculo.
* A sobrevivente de abuso doméstico que foi agredida verbalmente e levada a se sentir como um nada, que está rastejando para fora da mágoa ao permitir que outras pessoas digam que ela é mais do que essa dor, que ela está radiante, brilhante e livre.
* A paciente de câncer que tira selfies na quimioterapia, documentando os tufos de cabelo caírem, que quer que o mundo saiba que ela é valente, que ela encarou a morte e deu uma piscadinha, que ela não quer ser esquecida.
* Os imigrantes sírios que encontraram conforto nas selfies durante a sua rota traiçoeira pelos Bálcãs e que estão desafiando o mundo a vê-los como seres humanos fugindo da violência, mesmo enquanto países e estados continuam a fechar as suas portas para eles. Selfies são ferramentas extremamente efetivas para que refugiados ou pessoas vivendo em situações arriscadas possam reconfirmar a sua humanidade; é fácil ignorar um mar de rostos, mas é difícil dar as costas para apenas um, encarando a câmera com esperança e sofrimento, em busca de um santuário.
* A pop star mundialmente famosa que não aguenta mais ser destroçada por revistas e entrevistas em talk shows e que sabe que os retratos descompromissados que ela tira depois de shows são lançados diretamente aos seus fãs, que estão aprendendo a checar os feeds dos seus ídolos no lugar de revistas de fofoca quando querem o prato principal. A Beyoncé não concede entrevistas há anos, e talvez ela nunca mais precise fazer isso.
* A adolescente se recuperando de anorexia que fotografa a si mesma enquanto come hambúrgueres, bacon, chá-verde gelado; que encontrou uma comunidade de outras pessoas também em recuperação que encorajam uns aos outros a comer, a melhorar, a ficarem mais cheios.
* O pai de meia idade que começa a usar Snapchat para interagir com os seus filhos em vez de continuar intrigado por eles e percebe que nunca antes havia olhado para si mesmo com ternura, até agora.
* A modelo aposentada que quer apenas ser vista como uma garota de verdade pra variar, que amontoa batatas fritas na sua boca, uma diabrete desengonçada e desleixada num moletom sujo.
* Adolescentes com cabelos vibrantes em tons pastéis que acharam um lugar onde se encaixar, onde recebem encorajamento enquanto os seus corpos mudam, onde têm a chance de estar presentes e entusiasmadxs e se mostrar como transgênero, onde podem começar a viver plenamente como os seus “eus” autênticos.
* A mulher que decide fotografar a si mesma nua, vazar os seus próprios nudes, revelar as suas próprias curvas antes que outra pessoa tire essa alegria dela.
* Os adolescentes que estão se achando no Instagram e no Tumblr, criando “coletivos de imagens” como o movimento Art Hoe, no qual “adolescentes que não aceitam as categorias de gênero estão se posicionando na frente de obras de arte famosas de mestres antigos a abstracionistas para ‘levantar questões sobre a representação histórica de pessoas negras na arte’”. Jovens famosas como Willow Smith e Amandla Stenberg se uniram ao movimento, levando #arthoe a explodir e desafiar a maneira como nós estudamos e vemos a história da arte. Graças a movimentos como esse, jovens podem crescer num mundo onde talvez eles estabeleçam um código visual, onde eles sabem como questionar a arte que é apresentada como importante e oferecer uma nova iconografia de beleza que simultaneamente fragiliza o cânone excludente e reescreve o currículo acadêmico.
* A criança autista que começa a tirar selfies com o seu iPad e acha uma forma de abrir os seus calabouços internos ao capturar o seu eu exterior, encontrando um lugar na vibrante comunidade de selfies de pessoas autistas do Tumblr, na qual toda semana milhares de pessoas postam novas fotos, tentando estender o braço e conectar quando faltam palavras.
* A viúva idosa que encontrou uma comunidade inteira cheia de gente que dirá que ela é linda agora que o seu marido não pode mais.
* As milhares de pessoas que não se encaixam nos moldes definidos pelo capitalismo como “perfeição física”, cuja pele, ou altura, ou gênero, ou escolhas estéticas pessoais podem ter as deixado de fora do sagrado grupo Daqueles que Merecem Ser Vistos antes das selfies existirem. Aqueles que não poderiam encontrar a si mesmos em álbuns de fotografia, uma década atrás, porque ninguém nunca queria tirar as suas fotos, aqueles que traçam o próprio caminho. Eu vi pessoas de todas as cores e formas e pronomes serem amadas nas suas próprias vilas on-line, os heróis das suas próprias histórias. Eu observei, de canto, passeando por esse caleidoscópio de caras, enquanto eles colecionavam likes e admiradores e elogios, enquanto eles se tornavam ícones das exatas pessoas que eles esperam atingir. Eu os vi encontrarem uns aos outros e se unirem. Eu aprendi vocabulários totalmente novos de novas maneiras de olhar e para onde olhar. E existe sempre, sempre mais a aprender.
Esse é o potencial radical das selfies. É sobre isso que eu penso quando faço selfies, quando eu invoco mulheres do passado, quando lembro de Julia, Clover, Frida e Francesca, quando penso em todas as pessoas que queriam tanto serem vistas, mas que nasceram muito cedo para terem uma @ para si.
Eu desejo, a toda hora, que minhas bisavós (mulheres que eu nunca conheci; uma costureira gentil, uma entusiasmada esposa de advogado) pudessem ter feito milhões de selfies. Eu sinto como se eu devesse isso a elas e àquelas que ainda hoje se sentem invisíveis: continuar postando, continuar compartilhando, continuar curtindo, continuar procurando novas caras para curtir. Eu sinto que eu estou, que todos nós estamos, escrevendo nossa própria história com cada selfie.
E é dessa forma que selfies se tornaram máscaras mortuárias, memoriais à ideia de que um dia nós existimos. Existe alegria na confirmação que você tem um eu, que você tem uma vida, que o presente derradeiro que você não pediu é real, que seu o corpo tem massa. E depois vem a tristeza de saber que você precisa devolver o presente, que o seu navio tem buracos e que vai, um dia, afundar, que ninguém chega até a outra margem intacto. O ego, então, é sobre amar a si mesmo o suficiente para esquecer temporariamente que estamos todos desaparecendo, se amar para além do terror da insignificância, se amar para conseguir levantar da cama.
Visto dessa forma, amor-próprio não é algo do qual devemos nos envergonhar; é apenas uma tática de sobrevivência. E selfies são um instrumento dessa sobrevivência, minimomentos de fúria contra o morrer da luz (ou da bateria do iPhone, o que vier primeiro). Elas são a chance de criar imagens que vão durar mais do que nós mesmos, mediadas por nós, passadas a diante por nós, com alvos que nós podemos ainda não conhecer, mas que vão, mesmo assim, serem gratos por descobri-las.
Sua selfie nunca é doente, nunca tem o seu coração partido, nunca envelhece. Ela não precisa de sexo, de comida nem de assistência farmacêutica, a sua selfie é capaz de viajar para lugares que você não pode e ela vai viver mais tempo do que você.
Lembre-se disso: a sua selfie é um artefato e um presente. Pessoas na sua época podem não perceber isso. Elas vão chamá-lo de narcisista por parir centenas, talvez milhares, de pedaços de você mesmo. Eles vão se perguntar por que você precisa tanto de afirmação, de atenção, de visibilidade. Eles vão perceber sua cara como uma ofensa. Não ligue para eles. A sua selfie já se projetou para o futuro, quando todos nós estaremos mortos.
História escrita por Rachel Syme, editada por Mark Lotto e revisada por Rachel Glickhouse. Gifs animados e ilustrações por Alex Thebez e Marisa Gertz.
Traduzida para o português por Filipe Rossetti, revisada por Luís Cunha e editada por Caroline Barrueco.
Postada originalmente em Medium, e publicada em Noosfera com autorização da autora.