Lurdes mostrou seu talento com o barbante para César, apesar de todo o sofrimento que isso já havia lhe trazido. Em retorno, ele levantou a camiseta e mostrou o umbigo para ela. A diversão dos dois durou até César gritar que queria dançar no topo da cabeça de Lurdes. Nesse momento, ela se deu conta de que eles queriam coisas muito diferentes da vida e, com um peso no coração, deixou César brincando sozinho com sua sacola plástica. Anoitecia quando Lurdes abandonou o parque, arrastando um pequeno sino de prata e tentando formular o que ela própria queria da vida.
Após um massacrante esforço lógico, Lurdes chegou a conclusão de que faltavam objetivos na sua vida. Trôpega, ela vagou sem reparar aonde ia, até ter sua atenção fisgada por uma melodia alegre. Era o cego que ela havia abandonado. Apesar de doente, ele tocava gaita e pedia moedas com alegria. Mal Lurdes se recompôs do susto, começou a dançar, badalando o compasso com um pequeno sino de prata e as ruas ficaram cheias de gente que parou para ver e ouvir os dois. Nesse dia, Lurdes e o cego jantaram escargots e começaram uma turnê.
Apesar de não suportar o cego fora dos palcos, Lurdes tinha de agir como se os dois fossem um casal. Quem defendia isso era Mané Baitola, o agente da dupla, homem manco, porém alegre, que entendia de negócios e trocou todos os dentes por dentes de ouro com o dinheiro da primeira apresentação séria dos seus protegidos. Além disso, Lurdes passou a sofrer com o assédio dos fãs, que não paravam de gritar e tirar fotos e arrancar pequenos souvenires dela, sempre que ela aparecia sem disfarce em algum lugar movimentado. Mas, apesar de todas essas pressões que assolavam a rotina de Lurdes, ela era feliz. Porque, no palco, cantando de improviso e tocando sempre um instrumento diferente, Lurdes & o Cego faziam um som divino.
TODOS CHORAM: Uma batida de carro ceifou a vida da dupla de sucesso Lurdes & o Cego. O cego, que estava no banco do motorista, morreu na hora do impacto. Ao seu lado, Lurdes, que não usava cinto de segurança, teve o corpo arremessado para fora do carro e dentro do oceano, onde foi, especula-se, devorada por animais marinhos. Até hoje, cinco anos depois, dizem por aí que o ganancioso agente da dupla forjou o acidente para vender mais discos, que foi suicídio por que eles usavam drogas, e, ainda, que Lurdes sobreviveu ao acidente e passou a viver incógnita, com outro nome.
E tudo isso é verdade.
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Lurds é escrito por João Kowacs, com desenhos do Daniel Eizirik.
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